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O crochê que salva da morte

Gislaine Marins

“Preciso me concentrar em algo que me mantenha um pouco afastada de certas palavras e argumentações que ouço ali dentro, do contrário não conseguiria me segurar, xingaria o tempo todo, porque, acredite, ouço coisas que me dão vontade de esbravejar”.

Quem afirma isso é Daniela, mãe de uma jovem que morreu em um incêndio desencadeado por um acidente ferroviário na cidade de Viareggio, há dez anos. Os números da tragédia são impressionantes: um quarteirão destruído, trinta e duas pessoas mortas, cento e quarenta audiências, vinte e três pessoas condenadas em primeira instância. Mas nada disso pode medir a dor física e psicológica das vítimas e de seus familiares. A filha de Daniela sobreviveu por quarenta e dois dias sob sedação intensa. O seu corpo estava tão flagelado que os médicos impediram que os familiares o vissem. Para evitar infecções que agravariam ainda mais o quadro, os parentes só podiam conversar através de uma parede de vidro. Daniela conta que os médicos evitaram usar a palavra morte: limitaram-se a dizer que poderia acontecer a qualquer momento. A descrição dispensa a necessidade de referência explícita ao mal que não tem remédio. A mãe compreendeu perfeitamente o momento da despedida quando os enfermeiros perguntaram se ela gostaria de entrar no quarto onde a jovem permanecia em isolamento. A mãe teve medo de contagiá-la. Foi então que um dos enfermeiros perguntou o que aconteceria com Daniela se ela não abraçasse a sua filha pela última vez?

O que aconteceria se não pudéssemos abraçar um filho pela última vez? Como se chama a dor das mães de filhos desaparecidos? Como se chama a memória das mães que abraçaram seus filhos pela última vez? No primeiro caso, a única palavra que encontro para descrever é vazio, um vazio impreenchível, o vazio absoluto. No segundo caso, a memória se chama coragem. Coragem para ir além da morte. Para acompanhar o processo, para pedir justiça, para suportar a dor da ausência, com a paciência histórica e ancestral das mulheres, ponto após ponto, durante cento e quarenta audiências.

Daniela é mais que Penélope, porque sabe que tece uma tela e não haverá nenhum retorno. A sua memória se chama coragem e a sua coragem se chama vida que vence a morte. Giuseppe Ungaretti, poeta italiano que viveu, soube sentir e transmitir a dor da guerra, escreve esses versos que parecem esculpidos na pedra da qual fala: “Como esta pedra / é o meu pranto / que não se vê / A morte / desconta-se / vivendo” [esta tradução é de Haroldo de Campos]. No mesmo livro, que se chama “A Alegria”, o poeta reitera o sentimento de apego à vida diante da morte de um companheiro. Trata-se do poema “Vigília”, que transcrevo por inteiro: “Uma noite inteira / atirado ao lado / de um camarada / massacrado / com a sua boca / desgrenhada / voltada à lua cheia / com a congestão / das suas mãos / penetrada / no meu silêncio / escrevi / cartas plenas de amor / Nunca me senti / tão / preso à vida” [esta é uma tradução de Jorge de Sena]. Ungaretti, como se a dor o tivesse escolhido para aedo, cantou o horror da guerra, mas também a tragédia da perda de um filho. Daniela, com seu gesto mudo, geométrico, paciente, potencialmente infinito, parece partilhar a força que o poeta exprime por meio de palavras. Viver é resgatar a dignidade da filha, que nem mesmo a morte pode consumir.

É de dignidade, de respeito e de justiça que se fala, quando uma mãe desafia juízes e o próprio tempo com a força de uma agulha, de um novelo de linha e da mudez contida pela altivez dos que sabem o valor da vida. É de dignidade, respeito e justiça que se fala, quando à indiferença, ao desprezo e à burocracia se responde com o gesto inerme, cuja fragilidade evidencia ainda mais a arrogância do poder.

Vários jornais italianos deram espaço à história de Daniela na quinta-feira da semana passada, na altura em que o processo das vítimas de Viareggio deve passar à segunda instância. Já tinha decidido que escreveria sobre este assunto, porque a dor das mães jamais deve ser esquecida. Nunca imaginei que no dia seguinte um menino morreria de meningite no Brasil e que sua mãe, seu pai, seu avô e toda a família seriam atacados com fúria desumana, infame, bárbara, indescritível e incomparável com qualquer guerra, que, por mais cruel que seja, prevê tréguas. Ultrapassamos um limite muito grave, debochamos da morte.

Durante a Primeira Guerra Mundial, esta da qual falava Ungaretti na sua poesia, os soldados fizeram uma trégua. Foi no Natal de 1914. Depois de celebrarem o nascimento de Jesus, cumprimentaram-se e enterraram os soldados mortos no campo de batalha. E no nosso coração, o que fizemos? Secretamente continuamos tripudiando, depois que o escândalo do escárnio à morte de Arthur tornou-se público? Perdemos o pudor e a decência? Finalmente mostramos o nosso lado mais abjeto sem vergonha? Não esqueçamos, porém, que ao debochar da morte, antes de tudo desprezamos a vida. O apego à vida é absoluto, não pode ser declinado seletivamente. Quem ri da morte e humilha a vida sabe, no fundo, que está falando de um tempo inexorável, que atinge todos os seres indistintamente. Quem ofende a esse ponto pode negar, mas não pode não saber que antes de tudo as manifestações de ódio são o espelho das almas perdidas, dos corações ressequidos, da hipocrisia galopante.

Paz às mães e respeito pelas famílias que perdem seus filhos. É o que se exige de uma sociedade que ainda queira salvar-se da barbárie. Daniela é admirada na Itália por sua coragem. O que fez o Brasil com a mãe de Arthur?

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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