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No país da piada sem graça

Gislaine Marins

Sempre fui aristotélica em termos de comédia. Não se ri da desgraça alheia, não se ridicularizam a pobreza, as posições sociais subalternas, a nossa pobreza intelectual. O riso ridiculariza quem tem o poder e o conhecimento. A comédia é a moral aplicada à literatura. Por isso, Sócrates é personagem cômico; por isso, senhores são transformados em personagens cômicos. A avareza dos ricos é ridicularizada. A obsessão por processos é dessacralizada, como no caso da comédia As Vespas, de Aristófanes.

O riso deveria ser reservado a quem resvala, quando deveria ter condições de ficar em pé. A quem se corrompe, quando deveria permanecer íntegro. A quem é estúpido, quando possui conhecimento. Mas como nem tudo é linear, o riso também pode ser efeito de uma crítica que não visa diretamente a personagem no alvo da comédia, mas o espectador que ri. Não rimos de Sócrates pessoalmente, mas rimos da instrumentalização da filosofia, da transformação em retórica daquilo que deveria ser um ponto de partida para uma elevação cultural. É importante perceber isso para que ao final, ao rirmos de Sócrates, não estejamos rindo, sem saber, da nossa ignorância.

O que me afasta e me liga ao Brasil cada vez mais é o riso sem graça. Não acho cômico rir de negros desdentados, mal pagos, explorados, descritos como bêbados ou ignorantes. Não acho graça de piada em que os homossexuais são apresentados como pessoas efeminadas, frágeis, feminilizadas, fúteis. Não acho graça de piada em que mulheres são apresentadas como rainhas do lar, ingênuas, incapazes. Não acho graça de piada em que índio é descrito como alguém que não sabe falar português, que não conhece regras de etiqueta e deconhece os progressos das sociedades ocidentais. Citei essas quatro categorias, mas poderia citar portugueses, galegos, argentinos, padres, freiras, sacristãos, ladrões, mendigos e outras categorias que são tratadas com frequência como inferiorizadas na sociedade e nas piadas são ainda mais rebaixadas.

O que me afasta do Brasil é essa tendência a rir da desgraça alheia, que aniquila o outro enquanto reforça a própria posição de superioridade em relação àquilo que despreza. O que me liga ao Brasil é o não desistir de dizer que quem ri dessas piadas é ridículo enquanto afirmo a minha posição contra essa desertificação humana. Espero que uns dois leitores, como dizia Machado de Assis, os meus dois leitores, sintam-se envergonhados de rir da próxima vez que ouvirem uma piada que coloca no centro do escárnio alguém que sofre, rala, é discriminado, é inferiorizado já na vida real. É isso que me liga ao Brasil.

Não sou moralista. Não faço essas afirmações por ser politicamente correta. Não acredito que a arte deva sofrer censura. Simplesmente acho que existe matéria cômica ruim, de baixa qualidade, que não tem requisito para ser considerada uma boa piada e para causar o meu riso. Embora o riso seja um fenômeno em boa parte incontrolável, há sempre uma base cultural introjetada que nos permite rir de algumas coisas e de outras não. Se bastasse conhecer a língua, qualquer pessoa que conhece razoavelmente um idioma estrangeiro poderia rir das piadas na outra língua, mas isso não acontece, porque piadas, comédias e literatura em geral sobrepõem o plano da língua a um substrato cultural. Quem não conhece profundamente e não interiorizou algumas regras de cultura, não consegue entender certas piadas, por mais que compreenda a língua. O mesmo substrato cultural é útil para desenvolvermos anticorpos contra piadas de mau gosto. Se aprendemos a valorizar as pessoas da nossa comunidade como seres de dignidade inviolável, podemos rir da nossa corrupção, dos nossos deslizes, mas não da condição social em que vivemos. Começamos a achar que não tem graça rir de mãe-de-santo, de faxineira, de professor, de padeiro, de pedreiro, de joãozinho, de pessoas com deficiências ou de qualquer categoria que a nossa cultura hierarquizada nos acostumou a considerar de alguma forma inferior.

Não quero estragar a semana de ninguém, mas gostaria de lembrar um dito latino: o riso abunda na boca dos estúpidos. O riso é uma forma de liberação, às vezes possui até uma função protetiva em relação à nossa própria posição no interior de um grupo: rimos para rir junto, para ser parte. Mas não custa nada lembrar que rir nos distingue, nos individualiza. E explicita também quem somos, o que pensamos e o que desprezamos. Às vezes, rindo, não acabamos apenas com a reputação dos outros, mas também com a nossa.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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