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Livros proibidos

Gislaine Marins

Não basta combater notícias falsas, é preciso defender a liberdade de leitura. É um escândalo vivermos no século XXI e constatar que existem governos que boicotam escritores e obras em nome do moralismo. Acusam os progressistas de serem ideológicos, enquanto praticam a mais pura ideologia no seio de uma sociedade laica. Promovem a violação da dignidade do ser humano: a dignidade de acesso ao conhecimento.

Esta semana lembrei de Rubem Fonseca: quando Feliz Ano Novo foi publicado pela primeira vez, o livro foi imediatamente censurado e retirado de circulação pela ditadura militar. Em 2019, o autor foi novamente desaconselhado aos estudantes brasileiros. O que há de tão perigoso nessa obra? Há uma dissecação da violência. E se as pessoas compreendem como a violência está enraizada na cultura, elas também começam a descobrir as formas para sair dela. Elas começam a vencer o medo. A censura serve para isso: acentuar a ignorância e impedir que a coragem exija a dignidade roubada.

Muitas vezes, ao desvendarmos a violência, abrimos a porta da tragédia. É o que aconteceu com Édipo, o rei que casou sem saber com a própria mãe e sem saber matou o próprio pai. Ao descobrir a verdade sobre a violência cometida, ele furou os próprios olhos. A verdade é assustadora, mas a violência é mais ainda.

Outro exemplo de violência que apavorou os meus sentidos é ilustrada na tregédia de Tiestes, em disputa pelo reino de Micenas com o irmão Atreu. Este, enganado e traído por Tiestes, planeja uma vingança atroz: promete ao irmão metade do seu reino e convida-o para um banquete de repacificação. Atreu, na realidade, assassina os filhos de Tiestes e usa os cadáveres dos sobrinhos como parte da refeição servida. O pai acaba comendo a carne dos próprios filhos e ao descobrir o fato é trespassado pela dor. Como em toda a tradição cultural da Grécia antiga, o mal gera uma cadeia de vinganças e punições até que os erros sejam completamente reparados. O crime não compensa.

Há uma terceira história de violência que vale a pena recordar: o mito do Minotauro. O famoso monstro comedor de gente era na realidade filho do rei, para o qual os atenienses tinham perdido uma guerra. Como ressarcimento, a cidade precisava enviar todos os anos sete garotas e sete garotos para saciar o monstro, que vivia dentro de um palácio labiríntico, do qual ninguém conseguia escapar. Era morte certa.

Foi com coragem que Teseu, filho do rei de Atenas, ofereceu-se como voluntário. Ele pretendia matar o monstro e interromper a sequência de mortes. Para isso, contou com a ajuda de Ariadne, que deu a ele um fio a ser desenrolado enquanto ele ia ao encontro do Minotauro e a ser enrolado novamente para encontrar a saída do labirinto ao vencer o monstro. O mito de Teseu no labirinto é um mito sobre o fio do conhecimento.

Entrar na obra de Rubem Fonseca é como ir ao encontro de um monstro que os reis mantêm presos dentro de um labirinto. É preciso alimentar o medo da violência para manter o poder sobre a ignorância. É preciso um fio para descobrir que da violência é possível sair, que o conhecimento fornece as chaves do labirinto.

Uma das chaves de leitura não está no conto que dá título à obra, mas nas duas narrativas breves intituladas Passeio Noturno I e II. O que acontece ali é a mais pura violência, ocultada para os que não entraram no labirinto do horror e não possuem conhecimento para desvendá-la. Contando em duas frases: o protagonista é um executivo de uma grande empresa, que ao final do dia sai para dar um passeio com o seu carro de luxo a fim de espairecer, enquanto a família permanece em casa asssistindo à televisão e entretida com os afazeres domésticos. Ele consegue relaxar totalmente após encontrar a sua vítima: encontra uma rua escura, pouco frequentada, mira em um pedestre, acelera, mata, regozija-se com o rumor da morte nos ossos esmagados pelas rodas e volta para casa, afirmando que está mais relaxado.

Essa é a grande denúncia da obra: expor as vísceras da violência que não queremos mostrar, que se encontra dentro das famílias de bem, que frequentemente aparece nos jornais sob a forma de tragédia inesperada, quando bem sabemos que se trata de um drama serial. Se lêssemos mais, talvez teríamos a nossa sensibilidade mais treinada para a dissimulação, para a mentira, para as notícias falsas que recebemos, que nos traem e que nos condenam a ser vítimas. Por isso a censura cala os escritores. E Rubem Fonseca sabia bem disso. Não por acaso, o último conto da obra chama-se Intestino Grosso. Nele, o leitor penetra as entranhas do ofício do escritor e da cultura. A narrativa termina com um jornalista indignado porque o escritor bate com o telefone na sua cara, sem ao menos agradecer pela oportunidade de ter sido entrevistado. “Esses escritores acham que sabem tudo”, comenta. E o seu editor responde: “É por isso que são perigosos”.

Saber, de fato, é poder. E voltamos ao início: é preciso avaliar bem quando livros são censurados em nome da ideologia. Quem faz isso não protege, aterroriza. Sabe que é melhor manter as famílias brasileiras diante da televisão, diante das mensagens falsas, sem um fio condutor que as leve para fora do labirinto. Enquanto isso somos engolidos pela mentira, somos empobrecidos de conhecimento e de meios, pois uma coisa leva à outra. Sem conhecimento não podemos entender o que nos empobrece. E eu nem falei de orçamento secreto. Eu nem falei de sigilos centenários. Imaginem o que aconteceria se as pessoas soubessem o que está escondido.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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