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Imaginar a língua, criar o futuro

Gislaine Marins

Também seria preciso imaginar a língua. E assim começamos pelo meio, porque a história é um bonde que está sempre andando rumo ao futuro. É inútil deter-se para propor um início artificial, tão coerente quanto falso. No máximo podemos recomeçar a cada dia, como Dante, inventando uma língua e sendo considerado “vulgar”, no sentido que usava o “vulgus”, a língua do povo, para recriar o mundo e fixar os fundamentos da língua italiana.

No meio do caminho da nossa vida tinha uma pandemia. Dante, de repente, encontra Carlos Drummond de Andrade e nós sabemos que a história não para. Nunca esqueçamos disso, ainda que nossas as retinas estejam cansadas dos espetáculos grotescos que a realidade oferece. Afinal, era Drummond quem afirmava no livro Sentimento do Mundo (1940): “Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho os meus companheiros. Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças”.

Nessa travessia que todos os dias nos oferece novas tragédias e exige nova tenácia e novas respostas, surgem novas palavras que criam as premissas do nosso futuro. A maioria dos termos que entraram nas nossas vidas nos últimos anos estão impregnados de dor, frustração, desolação, desesperança, constestação, superficialidade, mentira. Com as palavras desse universo plasmamos a nossa relação com os outros e com o mundo. Por isso, é necessária uma arte amorosa e confiante, que reconstrua o que foi destruído e reúna o que foi separado; que esclareça o que foi ocultado e recorde o que foi esquecido. Uma arte gramática que incorpore ao nosso vocabulário as palavras necessárias para o nosso futuro.

Precisamos de uma futurática para ilustrar a arquitetura do mundo que desejamos recompor, de uma inovática que explique a teia dos laços que ainda não foram criados. Temos necessidade de uma pacificologia que examine a natureza das relações que consolidam a paz. É urgente imaginar o vocabulário que poderá sustentar um mundo mais solidário, empático, que transforme ideias em realidades.

Imaginar a língua do nosso futuro é ambicioso, pois em geral os neologismos correspondem a exigências e problemas que precisamos resolver. A língua acompanha o tempo que escorre e é guardiã do tempo que passa, mas também pode ser o veículo que nos conduz à descoberta daquilo que imaginamos. Nesse sentido, a língua é uma utopia que geralmente encontra o seu espaço privilegiado na literatura. Daí os escritores serem vitais para a sobrevivência da língua, da cultura e do próprio povo: são semeadores do futuro. Daí a importância dos leitores, que ampliam a ressonância de cada palavra, que nutrem a língua, que renasce sobre os seus próprios escombros. Daí a necessidade de ter um mundo, onde as ideias possam encontrar a matéria e a fertilidade. Daí a urgência de imaginar o futuro, colocando nele as melhores palavras, na melhor composição, como se pudéssemos transformar a vida em um poema. Como se cada poema fosse uma ode. Como se cada ode fosse a expressão molecular da língua que imaginamos e do futuro que iremos criar.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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