Hamlet e o gato dentro da caixa
A versão científica para o dito popular "nesse mato tem coelho" chama-se paradoxo do gato de Schrödinger. Enquanto historiadores trabalham principalmente com matéria documental, literatos lidam com a tragédia e os cientistas ligam as duas pontas: o paradoxo do gato mostra que a questão é ser e não ser. Por isso, compreender a complexidade do processo é tão importante quanto saber a resposta.
Schrödinger propunha a construção de uma máquina infernal, que demonstrava a sobreposição de dois eventos aparentemente inconciliáveis: vida e morte. Dentro de uma caixa de aço era posto um gato. Além disso, em um local inacessível para o gato, era colocado um contador de radiação e uma porção ínfima de matéria radioativa. A probabilidade de a matéria radioativa se desintegrar durante a duração do experimento, envenenando o gato, é de cinquenta por cento. Por isso, ao olhar para a caixa fechada, ou para o mato, não é possível saber se o gato está vivo ou morto, nem se o coelho de fato está dentro. Para saber a resposta, o único modo é abrir a caixa, ou derrubar o mato. Dito de outra forma: podemos conhecer as respostas a posteriori, mas temos de lidar com a possibilidade de ser e não ser quando vivenciamos a realidade.
A máquina infernal poderia ser aplicada à Hamlet e a qualquer pessoa: este experimento fantástico que chamamos de vida nos coloca sempre a um passo da tragédia. E não importa que tenhamos conhecimento ou possamos fazer previsões e hipóteses sobre os fatos: o que caracteriza o trágico é o estarmos sujeitos a um evento inesperado (mas não alheio à nossa experiência) e à ruína. O que caracteriza a complexidade é a nossa capacidade de viver conscientes de possibilidades tão extremas.
Rubem Fonseca escreve, no conto Intestino Grosso, que os escritores são perigosos. A literatura, como a física, retrata perigos que podem nos atingir a qualquer instante. Enquanto a física nos explica isso com cálculos, causas e efeitos, a literatura vale-se da narrativa, ilustra o dito popular, exemplifica, conta a tragédia: a física nos demonstra o paradoxo. Em ambos os casos, somos convidados a seguir um percurso e a entrar na sua complexidade para percebermos a dimensão do desfecho. Mais do que respostas, a literatura e a ciência nos oferecem um modo complexo de percorrer a nossa existência.
Complicar é preciso, viver não é preciso. É necessário dar espaço à complicação, entrar nos seus meandros, ensinar à garotada que nada é fácil, que a banalização é um passo no abismo. Precisamos de escritores perigosos e de leitores corajosos. Contra a cultura da síntese, contra o conceito mastigado, contra a auto-ajuda, contra as histórias anônimas, repassadas pelo whatsapp, contra as frases falsas de falsos autores, contra o plágio, contra a mentira e pela determinação de viver perigosamente, aventurando-se na leitura e na vida. Não há caminhos fáceis. A tragédia está sempre a um clique do celular e a prova dos nove está ao alcance da tela dos nossos celulares: fizemos a pior eleição política da nossa história democrática. Sem debate, sem informações verificadas, na base do boato, dos memes, da manipulação dos dados e das imagens, do copia e cola.
Estamos dentro do mato, dentro da máquina infernal de Schrödinger: não sabemos o desfecho da história. Mas podemos conhecer a complexidade, enfrentar a complexidade, desafiar a complexidade, explorar caminhos complexos.
Hoje fazia sol, a temperatura era amena e o inverno me causava uma certa perplexidade. Algo parecia estar fora do lugar: um coelho no mato, um gato na caixa. Por isso decidi falar do viver complexo. Na verdade não é tudo: o Brasil anda muito estranho, mas isso todos sabem. A questão é como decidiremos chegar ao fim da história.
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