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Fracassamos, que bom

Gislaine Marins

Este foi um ano de grandes fracassos. A pobreza aumentou. O desemprego aumentou. O dólar aumentou. A gasolina aumentou. A mentira aumentou. O ódio aumentou. As demonizações aumentaram. O crime aumentou. A fome aumentou. A luz aumentou. As despesas aumentaram. A ignorância aumentou. O fanatismo aumentou. O desespero aumentou. Está ótimo, a maioria venceu.

De minha parte, só tenho a festejar as minhas derrotas, que são: acreditar no amor, na construção cotidiana da democracia, no arrependimento, na justiça, na inocência. Também acredito na flor e na borboleta livre. Acredito no rio que corre e nas crianças indígenas. Acredito na mutação das nuvens. Acredito nas palavras. Acredito no conhecimento. Acredito nas dificuldades. Acredito na tristeza. Acredito nos sorrisos. Acredito na dignidade. Acredito nos pobres. Acredito na luz da lua e no movimento das ondas. Acredito na risada das crianças. Acredito nos sonhos. Acredito nas ideias. Acredito na agricultura dos campesinos. Acredito nas mães sem marido. Acredito nos que buscam uma casa. Acredito no samba. Acredito na dança. E, por isso, sou uma fracassada.

Que bom, eu digo. Nada como o reconhecimento de um fracasso para abalar a crença na segurança financeira, nos círculos bem frequentados, na estabilidade da vida, na esperteza, no jeitinho, na maldade, na indiferença, no sucesso, no fascínio, no poder. O fracassado é antes de tudo um forte, capaz de desafiar o que aos olhos e à evidência dos fatos, não pode ser vencido. E apesar de tudo, o fracassado continua ali, como se a sua própria existência fosse a certeza de que nenhuma teoria jamais será a verdade. Os fracassados lutam contra o absoluto, contrariam todas as probabilidades.

Que mundo seria, se os fracassados não dessem sentido a palavras como persistência, responsabilidade, coragem, força? O que seria da palavra destemido, se um fracassado não mostrasse com a sua presença a injustiça das lutas desiguais? O que seria das palavras trégua e paz, se os fracassados não sofressem as perdas?

Mas, como tudo na vida, há um lado ruim em ser fracassado: é ser inerme diante da soberba, da vingança, da irrisão dos vencedores. Perder muitas vezes significa ficar à mercê da prepotência. Quando os vencedores exibem os músculos, os dentes e a arrogância, mais fracassados ficam os derrotados. Quando os vencedores desprezam e aniquilam, mais mostram que o fracasso é também a tentativa de eliminação, é a sanha dos que não suportam a existência do outro, ainda que fracassado. Não existe um grande fracasso sem um vencedor implacável, incapaz de perdoar, ávido por satisfazer o seu rancor.

Ah, foi um ano ruim, foi um ano péssimo. Este foi o ano em que muitos fracassados viram-se, de repente, com a força de suportar o peso do mundo. Foi um ano em que pessoas foram jogadas no fracasso e não perceberam ainda os obstáculos que o próximo ano reserva. Foi um ano em que alguns aceitaram o fracasso com a responsabilidade dos que existem para construir o futuro. Foi um ano ruim, mas os fracassados foram os melhores. O fracasso ensina a ter sonhos, ensina a abraçar, ensina a sentir a dor do outro. Fracassamos, amigos. Nós vencemos.


 

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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