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Aes querides falantes

Gislaine Marins

A Câmara de Vereadores de Porto Alegre proibiu a linguagem neutra. Digo eu: se boa parte dos falantes de português no mundo não adota nem o acordo ortográfico ratificado por grande maioria dos países de língua portuguesa, o que se dirá da nova norma dos gaúchos? Sirva a nossa façanha de modelo a toda a Terra! Vã ilusão, digo, alusão, pois a língua não pertence aos legisladores, embora eles possam acreditar nisso. E digo mais: a língua também não pertence aos gramáticos, mas eles sabem disso. Sabem e explicam que as regras do idioma, emersas no uso das línguas calejadas pelo falar, são ferramentas preciosas para facilitar a nossa comunicação. São instrumentos dos quais nos apropriamos para dar forma às novas experiências da vida e à percepção daquilo que vivenciamos.

O que significa o “x” e o “e” para quem utiliza a linguagem neutra? Significa uma tentativa de dirigir-se a uma plateia plural, formada por pessoas com diferentes percursos individuais e que pedem respeito pelo modo como se percebem no mundo. É claro que o problema dos vereadores de Porto Alegre não era a língua, mas o respeito pelo outro. A língua é democrática e sempre pronta à inovação. Se assim não fosse, também deveríamos retirar por decreto todos os novos verbos que se introduziram no nosso cotidiano: de “tuitar” a “deletar”, afirmando categoricamente que passarinho canta e mensagem se apaga, como manda a tradição do vernáculo de Camões.

Deveríamos lembrar o velho bom senso: a César o que é de César, e deixai a língua em paz, meus senhores! Até os gramáticos são mais republicanos que os nossos vereadores, incluindo coerentemente os verbos tuitar e deletar no rol dos verbos regulares de primeira conjugação. E, de fato, é sempre a gramática, sábia protetora da memória linguística, a lembrar que a desinência “e” é atribuível a dois gêneros. Poderíamos encontrar certa dificuldade e surpresa diante o impronunciável “x”, mas para isso os vereadores da Leal e Valerosa não precisavam exibir falso conhecimento gramatical, bastaria deixar aos porto-alegrenses a árdua tarefa de soletrar as palavras e aos gramáticos os comentários especializados. É evidente: o problema dos vereadores não é a língua, nunca foi.

Os guardiães da língua somos nós, querides falantes. Por isso, estudar é importante. Serve para entender que a língua portuguesa, no Brasil, teve uma evolução social e histórica que acompanhou a nossa segregação por classes. E nessa luta pela palavra exclusiva, distinção de berço e de bolso, os estrangeirismos vindos do francês, o idioma das luzes, da higienização do Rio de Janeiro e das elites esclarecidas, pareciam ter o perfume de um bebê que acabou de trocar as fraldas: adorável! Que importa se expulsaram todos os pobres, destruíram os cortiços e internaram Lima Barreto em um manicômio? (Aliás, no meio de tantas desgraças nos últimos anos, os governantes esqueceram que Lima Barreto era um indesejável, desses que retiram das galerias dos vultos da nossa cultura e o seu nome passou entre os grandes homenageados na UNESCO durante o Dia Mundial da Língua Portuguesa. Quase cheguei a pensar que os moralistas, além de conhecerem pouco a gramática, também são turistas da literatura.)

Os italianismos, ao contrário, caíram na boca do povo e hoje somos os únicos lusófonos que dizemos “tchau” a torto e a direito. É provável que a grande maioria das pessoas, incluindo ilustres legisladores, não sabe que ao dizermos “tchau” estamos evocando a expressão servil “seu escravo” (“schiavo”), de onde vem o “ciao” em dialeto vêneto, mais tarde incluído na língua italiana. Defensores ortodoxos da pureza linguística do nosso léxico deveriam organizar uma marcha pela moralidade das despedidas e impor “adeus” a todos os falantes!

O que dizer, então, das nossas influências africanas? Poderíamos valorizá-las muito mais em vez de confiná-las em almanaques de curiosidades antropológicas e de exibi-las nos cardápios turísticos. Os nomes de origem indígena? Um mistério oculto sob o apagamento cultural. Para que saber o que é iguaçu? Por lei e por conveniência, escrevamos todos Iguassu: e nenhum tour operator se perderá nos labirintos dos teclados estrangeiros. Mais difícil é encontrar quem saiba que a cedilha costuma assinalar a introdução de um termo vindo de outro idioma no português e que a palavra remete ao grande volume de águas bem protegido pelos indígenas. Desconheço a existência de uma lenda sobre os terríveis castigos para quem desafia as águas, mas assim que o desmatamento da Amazônia for concluído, como querem os adoradores de motosserras, veremos todos quais serão as nossas penas. Se sobrevivermos a um Brasil sem Amazônia e sem Iguaçu, é claro.

Querides falantes, se o problema fosse a língua, os doutos legisladores teriam atacado as palavras de dois gêneros. Escreveriam: de hoje em diante será obrigatório dizer presidento e presidenta, comercianto e comercianta, falanto e falanta, querido e querida! Turista para meninas, turisto para meninos. Dentista para mulheres, dentisto para homens! O problema não era a língua, era a moral. E erraram nas duas frentes: a da língua, porque não é de sua competência, e a da moral, porque perderam a ocasião de valorizar a diversidade e o respeito na sociedade. 

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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