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A cultura, uma das prisões dos pobres

Miguel Debiasi

 

Cultura, inculturação, enculturação são termos muito empregados nos últimos séculos. Cultura, inculturação e enculturação não são inatas e alheias ao ser humano. Inseridos numa sociedade com seus grupos sociais é preciso perguntar-se: somos produtos de qual cultura? O que produzimos e reproduzimos na cultura? É preciso refletir sobre a cultura, pois ela nos acompanha do nascimento à morte.

Iniciamos a reflexão com uma breve definição dos termos, com base nas ciências sociais como a sociologia e a antropologia. O termo “cultura” diz respeito às tradições, os comportamentos, conhecimentos de um determinado grupo social, incluindo a língua, comidas típicas, religiões, música, artes, vestimentas, valores e símbolos constituídos pelos seres humanos. Na época clássica o termo cultura era utilizado no sentido da palavra grega “paideia”, referindo-se à formação total da pessoa. A partir do século XVIII, na Alemanha, o termo cultura está relacionado a um sentido seletivo e aristocrático que valoriza a atividade intelectual, considerada a mais nobre. Para o sociólogo alemão Niklas Luhmann (1927-1998), o termo está relacionado a uma visão geral e transversal do que compreende as produções humanas e sociais, a tudo que diz respeito à vida comum.

Em 1935 três antropólogos americanos publicaram na revista American Anthropologist, uma definição do termo “inculturação”: “o conjunto de fenômenos que resultam de um contato contínuo e direto entre grupos de indivíduos de culturas diferentes e que conduz a modificações nos modelos culturais iniciais de um dos grupos ou dos dois”. A definição é refutada por muitos sociólogos e antropólogos, porque ela leva aceção negativa, porque a cultura dominante não aceita reversa ou deformação e tende a impor sua forma dominante, como verdadeira forma de colonialismo cultural.

O papa João Paulo II, no documento “Slavorum apostoli”, de 1985 escreve: “a inculturação é a encarnação do Evangelho nas culturas autóctones, e ao mesmo tempo a introdução dessas culturas na vida da Igreja”. Essa ideia também não foi bem aceita entre sociólogos e antropólogos, porque a cultura seria transformada e regenerada pelo Evangelho que produz com sua tradição expressões de pensamentos cristãos.

Em nível teológico a inculturação acontece na relação de compenetração entre o cristianismo e as culturas, através de um intercâmbio fecundo, algo ocorrido nos primeiros séculos da era cristã entre a cultura grega e romana. Hoje, a teologia compreende a inculturação como um processo da fé cristã, visto que a revelação divina se realiza pelo encontro entre Deus e a humanidade. A evangelização é um processo intercultural, a mensagem do Evangelho torna-se bem compreendida quando preserva a cultura que a recebe. A verdadeira evangelização promove a cultura à luz do Evangelho.

Na compreensão geral a “enculturação” estaria relacionada ao processo educativo dos seres humanos, quer informal ou formalmente, onde cada pessoa aprende os elementos da sua própria cultura. Este processo educativo, quando ocorre informalmente e de modo contínuo, consciente ou inconscientemente, as pessoas aceitam a cultura e a promovem por meios da tradição, do envolvimento com grupos e da participação nas instituições sociais.

Conscientes ou inconscientes somos todos produtores de “cultura” e reprodutores por vivermos sob influência da realidade e por estarmos ligados a certos grupos sociais. O filósofo italiano Antônio Gramsci (1978-1999) sobre essa questão escreve: “toda cultura tem o seu momento especulativo ou religioso, que coincide com o período de completa hegemonia do grupo social do qual é a expressão”. A cultura que a sociedade instaura, por meio de seus mecanismos e sistemas de valores e normas de conduta, promove uma coesão social. A coesão social não é absoluta, mas há uma unidade produzida e mantida pelo consenso ativo dos integrantes ou indivíduos de um grupo social que Gramsci a denomina de hegemonia cultural. Historicamente o sistema capitalista assegurou hegemonia cultural pela coesão social, pela defesa da propriedade privada, dos meios de produção da existência e da exploração do trabalhador, o qual necessita se submeter a esse processo e dá a sua continuidade.

A hegemonia cultural capitalista produz na sociedade uma desestruturação da cultura do trabalhador e que obscurece sua própria condição de exploração. A desestruturação de uma cultura cria outras formas de compreensão distorcida da realidade. No caso dos trabalhadores, ao perderem sua cultura por uma outra que não é sua, tem dificuldade de perceberem os interesses da cultura dominante e isto facilita a coesão social. A dominação cultural é sempre um espaço de fuga, dado que muitos têm dificuldade de pensar sobre si e sobre o mundo à sua volta.

Quando falta uma cultura qualificada de preparação do ser humano é preciso desconfiar do sistema e dos líderes que conduzem a sociedade. Na falta de uma cultura que liberta e qualifica o ser humano a tendência é buscar um padrinho poderoso de quem possa ser cliente e ao mesmo tempo um refúgio. Na cultura tradicional os pobres tornaram-se os passivos de seus padrinhos econômicos e políticos, isto fortalece a estrutura cultural da sociedade. Essa cultura legitima a consciência da submissão, da fraqueza e mostra que essa é uma situação irreversível. Nesse sistema social a cultura é a prisão dos pobres, diz o teólogo belga José Comblin.

O grande desafio político, educacional, social dos novos governos é libertar os pobres da cultura dominante. Historicamente no Brasil a cultura legitimou a preservação das situações tradicionais e isso mostra que foi muito fácil os ricos e poderosos manterem sua dominação e controle sobre o povo. É preciso oferecer educação qualificada para libertar os pobres da cultura que os mantém dominados por muitos séculos. Aquela educação que liberta os pobres dos caminhos ilusórios e enganadores que sempre foram oferecidos. Nas palavras de Gramsci é preciso criar uma nova cultura, não da hegemonia e da coesão social, mas aquela da consciência de classe e que produz uma cultura libertadora.

Sobre o autor

Miguel Debiasi

Frade da Província dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul. Mestre em Filosofia (Universidade do Vale dos Sinos – São Leopoldo/RS). Mestre em Teologia (Pontifícia Universidade Católica do RS - PUC/RS). Doutor em Teologia (Faculdades EST – São Leopoldo/RS).

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