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Sorte é o maior azar

Gislaine Marins

Tenho uma amiga cujo marido limpa a casa, arruma a cama, faz as compras, lava a roupa, passa a ferro, leva o filho para o jogo, ajuda nos deveres de casa, vai à reunião dos pais na escola. E no final de semana, depois dos dias puxados no trabalho, ainda encontra tempo para convidar a esposa para jantar fora e para ser o ombro amigo dela.

É verdade que nem tudo é perfeito. Ela me diz que não deixa ele colocar os pés na cozinha, porque ele não tem um grande talento para o forno e o fogão. Também frequentam apenas alguns restaurantes, porque além de não cozinhar muito bem, ele é bastante exigente em relação à gastronomia.

As nossas amigas em comum costumam dizer que ela é uma mulher de sorte, o que a deixa sempre muito chateada e ao mesmo tempo sem palavras. Sim, é verdade que a realidade da grande maioria das mulheres hoje é aquela que vivencia o seu marido: com dupla jornada de trabalho, a preocupação dos filhos, o cuidado com o cônjuge. O problema é que a minha amiga não queria ser uma mulher de sorte: gostaria que o respeito pelas mulheres e a paridade de gênero fossem direitos de todas. Sorte é o maior azar, é a falência da justiça social.

A minha amiga fica ainda mais deprimida porque há muitas mulheres que gostariam de ter a mesma sorte e não percebem que dito azar também é conhecido pelo nome de machismo. Não reconhecer isso é ignorância somada à impotência. Ou impotência causada pela ignorância. Ou falta de coragem para exigir dignidade. De toda forma, o machismo precisa ser removido, como uma lente que distorce a visão do horizonte.

Certa vez, o marido da minha amiga telefonou para o trabalho dela. As colegas se assustaram, pois sabiam que ele evitava ligar para não atrapalhar a mulher. Ouviram algumas respostas monossilábicas e o ruído do fone no gancho. "Tudo bem?" - quiseram saber. "Sim, ele queria a minha opinião sobre um conjunto de pratos. Eu disse que confiava no seu bom gosto" - respondeu ela. Suspiraram aliviadas e com ciúmes de uma condição tão privilegiada.

Ela não achava nada disso. E eu também refleti sobre a oportunidade de falar sobre uma história tão extraordinária. A excepcionalidade não costuma ser uma boa estratégia narrativa. De fato, tudo seria muito mais verossímil, se eu tivesse contado que o marido era a esposa e ela era o marido. Então faria sentido nesse mundo machista em que vivemos. Ademais, ainda que eu dissesse que é tudo verdade, pouca gente estaria disposta a acreditar. O imprevisto pertence ao trágico. E é mesmo trágico que tão poucas mulheres no mundo sejam tratadas por quem são e não pelos papéis sociais que lhe deram nos vários contextos que frequentam e atuam.

É trágico que a sorte seja uma forma de amor, que a ausência de machismo se traduza em amor, pois amor deveria ser um bem universal e o respeito deveria ser o princípio fundador de qualquer relação. A sorte é uma injustiça.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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