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Perdida pelas ruas de Roma

Gislaine Marins

O Ministério do Turismo italiano criou uma desastrosa campanha promocional, usando como garota-propaganda a Vênus de Botticelli. Na campanha, a deusa é retirada do seu contexto original e aparece nos mais diferentes cenários, como se fosse uma turista qualquer. Eu estava vagando pelas ruas de Roma esses dias e comentei: é mais fácil conhecer Roma lendo um livro do que fazendo um selfie.

Hoje o turismo virou um espetáculo de ostentação. Entre um selfie e um monumento, as pessoas não buscam as suas almas, o que se dirá da alma das cidades. O centro virou um rio humano, mas não me sinto como os modernistas, perdida no meio da multidão. Acho mesmo que é a multidão que está perdida no meio de tantas maravilhas e tantos segredos. E acho que escrevo por me sentir vivente: sim, escrever é gritar que a vida é aqui e agora. Deixar de buscar o sentido das ruas e a fadiga daqueles que nelas trabalham é ajudar a transformar a cidade em ruínas, em museu deserto, útil somente para cenário fotográfico.

Um dia um casal de amigos telefonou para avisar que viriam a Roma por uns três dias. Três dias? – perguntei – Não é possível! Roma não pode ser vista nem mesmo em sete dias, mas digamos que sete é o número mínimo. Fui esperá-los na estação e pegamos o trenzinho que se dirige à zona leste da cidade, onde moro. Um percurso na contramão do turismo predador do centro da cidade. No caminho, atravessamos a maior porta da cidade, a Porta Maggiore, por onde entravam os produtos agrícolas do sul da Itália e também dos arredores da cidade. Pela janela do trenzinho, víamos os aquedutos que levavam água para os romanos desde a antiguidade, víamos os bairros bombardeados durante a Segunda Guerra Mundial, pois interromper o fornecimento de bens, destruir as estradas e as indústrias, elementos presentes em abundância nessa zona da cidade, significava derrotar o inimigo, com as pessoas inocentes no centro da tragédia.

Descemos na altura do Mausoléu de Santa Helena, que quase nenhum turista visita, mesmo sendo o maior mausoléu do Ocidente. É um monumento quase exclusivo dos moradores da zona, que vão ao parque correr, jogar cricket, fazer piquenique, caminhar e conversar. E pensar que o Imperador Constantino tinha pensado em construir o mausoléu para si mesmo, mas depois considerou que, para assegurar o seu prestígio e domínio no Oriente, convinha construir o seu mausoléu, ainda maior, em Constantinopla, deixando o anterior para sua mãe, Helena. Abaixo do mausoléu há uma catacumba fantástica que até há poucos anos abria apenas dois dias por ano, durante a festa dos santos padroeiros Pedro e Marcelino. Hoje abre regularmente, mas pouca gente visita: afinal, ela não está catalogada entre os monumentos mais conhecidos da cidade. E cerca de quinhentos metros adiante, para quem gosta de registros históricos, ainda encontramos a placa rodoviária com a inscrição “Roma”, indicando que entramos na zona urbana da cidade: foi ali que os soldados americanos fizeram a foto para atestar que realmente tinham conseguido entrar na cidade para expulsar os nazistas.

Ninguém precisa visitar uma cidade buscando a sua alma. Pode tranquilamente perder-se e questionar apenas as suas sensações interiores. Mas posso garantir que é impossível ficar indiferente quando descobrimos que estamos pisando sobre pedras com mais de dois mil anos, que estamos atravessando bairros que pagaram com o sangue dos seus cidadãos, os “partigiani” da resistência italiana, a liberdade e a democracia que os italianos possuem hoje. É impressionante pensar que aqui muitos e por muito tempo viveram plantando, criando ovelhas, fazendo queijo ou tendo pequenas oficinas, servindo o centro, dentro dos muros. E se passearmos pelo parque da Via Appia Antiga, encontraremos não apenas o local onde, segundo a tradição, São Pedro teria visto Cristo, perguntando “Onde vais?”, mas iremos encontrar os rebanhos de ovelhas que ao final do dia retornam para as estrabarias. Pastam na mesma grama há séculos e ainda hoje nos dão a mais típica ricota romana.

Eu passo todos os dias pelo centro de Roma. É maravilhoso, mas há maravilhas em todo lugar. A maravilha está na história e na nossa capacidade de deixar-se comover pelo ambiente e pelas pessoas. Sei que há maravilhas nos lugares mais desconhecidos. O que não sei é se sou uma turista em via de extinção ou se é o turismo que se esgotou com um modelo que retira as deusas dos seus museus e transforma-as em influencer.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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