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Laços complicados

Gislaine Marins

          Todos os anos é a mesma coisa: dia dos pais vira dia de polêmica. Na Itália, a festa é celebrada no dia de São José, mas o problema não é religioso, é sobre o conceito de família. Os mais amenos afirmam que celebrar o dia dos pais faz sofrer as crianças que não possuem um pai ou que estão separadas dos pais. Os argumentos mais polêmicos defendem que a festa ofende o direito das crianças de famílias em que um dos pais não é reconhecido. Em geral, os discursos falam disso: de direito das crianças e de proteção contra o sofrimento que uma festa pode causar. Mas será que as coisas estão realmente assim?

           Qual será o sofrimento cotidiano de uma criança abandonada pelo pai ou vítima de violência? De quem é a maior culpa? Do pai irresponsável ou das crianças que possuem um pai e querem celebrar a sua festa? E por que festejar o pai deveria causar sofrimento para uma criança que é criada por uma mãe, ou por duas, ou por cuidadores, sejam eles quem forem? Dito ao contrário: as crianças que têm um pai deveriam sofrer por não terem apenas uma mãe, ou duas, ou dois pais, ou avós ou outra situação familiar que ilustre a enorme diversidade de laços familiares que a nossa sociedade acolhe?

           Fico um pouco preocupada com o fato de as crianças não terem voz: são os adultos que se preocupam com o seu sofrimento, são so adultos que fazem escolhas, são os adultos que provocam eventualmente o sofrimento, são os adultos que ensinam a discriminar e são os adultos que deveriam olhar-se no espelho antes de falar em nome delas. Por trás de tanta preocupação com o sofrimento das crianças não raramente se esconde um álibi: uma desculpa para não falar da vida dos adultos.

            Com frequência, os adultos valem-se do conceito de “direito à genitorialidade”, esquecendo que o princípio desse direito está na proteção da criança em ter pais e não dos adultos em ter filhos. A polêmica em torno do dia dos pais cobre várias questões que não são discutidas abertamente e com maturidade pelos adultos. A começar pela bioética.

              É ético deixar de reconhecer um filho? É ético não declarar a identidade do pai ao registrar um filho? É ético alugar o útero de uma mulher, especialmente as que vivem em países pobres e que aceitam a gestação por razões econômicas? É ético transformar a maternidade e a paternidade em um comércio regulamentado por regras e também pela exploração da “mão-de-obra”, como ocorre em qualquer mercado de trabalho? É ético ocultar às crianças a sua real origem biológica e genética, visto que os bancos que conservam as células essenciais para a reprodução em laboratório geralmente tutelam a identidade dos doadores? É ético fazer essas escolhas e solicitar que crianças em outras situações familiares abram mão de festejar os seus pais?

               São tantas as perguntas, que somente os adultos podem responder. Tirem as crianças disso. As crianças sofrem todos os dias, pelas mais diferentes razões, e as crianças em situações particulares certamente sofrem mais do que as outras. Sim, é preciso falar do assunto, mas com os adultos, que são responsáveis pelas consequências das suas escolhas. Pode ser doloroso não ter filhos, pode ser uma escolha, pode ser uma fatalidade. Cada pessoa conhece a sua própria história. Mas ter filhos é uma responsabilidade e não é um direito. O direito cabe aos mais vulneráveis: às crianças. É preciso sim, pensar nelas, no direito delas e não na nossa irresponsabilidade ou no desejado direito que, como adultos, não temos.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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