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A comunidade, a nossa casa

Miguel Debiasi

A modernidade impactou as relações humanas e sociais. A canção de Mercedes Sosa “todo cambia”, é realidade palpável em nosso tempo. Incapazes de impedirmos as mudanças somos impelidos a nos configurar no tempo como seres de historicidade significativa. A comunidade pode ser a grande aliada para vencer esse desafio humano.

Nas últimas décadas os cientistas sociais buscaram novas categorias teóricas para explicar as mudanças ocorridas. A “pós-verdade”, foi um termo usado pelo dramaturgo sérvio-americano Steve Tesich, na década de 1992. A expressão ganhou o mundo no século XXI, referindo-se às mudanças culturais e da influência das mídias digitais na formação da opinião pública com potencial de desconstruir verdades e de disseminar fake News. Tempo antes, Émile Durkheim (1858-1917), filósofo, sociólogo e antropólogo francês empregava o termo “das sociedades complexas”.

O movimento racionalista, iniciado ainda no século XVIII, acabou por modificar a cultura e a relação do ser humano com o mundo. A grande mudança foi a transição da visão teocêntrica para a antropocentrista, onde o indivíduo torna-se inteiramente responsável por seus atos. Nessa transição o indivíduo passou de coadjuvante para protagonista de referência para a compreensão do mundo e da história.

Do ponto de vista sociológico, nas sociedades primitivas da Idade Moderna a organização social ocorria na forma de vizinhança. Nessa organização social as instituições e as comunidades compartilhavam os mesmos valores sociais, religiosos e morais. As relações sociais aconteciam em vista desses valores assegurando uma ordem social estável e confiável. Nessa organização social o indivíduo era um membro na comunidade. Este mundo foi posto abaixo pela modernidade, colocando no pedestal o indivíduo e sobrepondo-se às instituições, comunidades, grupos sociais.

Zygmunt Bauman (1925-2017), sociólogo polonês que viveu os tormentos da Segunda Guerra Mundial, que presenciou a Revolução Industrial, o crescimento do sistema capitalista, os avanços da tecnologia, da robótica e da expansão da globalização postula os termos da “sociedade líquida” e da “cultura pós-moderna”. A terminologia refere-se à civilização do século XXI como sociedade fragmentada e diluída, na qual, o indivíduo se organiza, conecta e desconecta no momento em que deseja. Este modelo pôs em crise a comunidade, consequentemente, obrigou os cientistas a repensar o sentido dela para civilização do século XXI.

A doutora em Ciências da Religião, Carolina Teles Lemos, escreve que é indiscutível a importância do conceito de comunidade em diversos setores: intelectual, científico e no campo religioso. Normalmente, o espaço que mais aplica-se o termo comunidade é na religião, na maioria das vezes, empregado para falarmos dos fiéis da Igreja, no sentido de agrupamento humano.

No sentido sociológico a palavra comunidade refere-se às unidades sociais como aldeias, conjuntos habitacionais, vizinhanças, até grupos étnicos, nações e organizações internacionais. Ou a um grupo de pessoas dentro de uma área geográfica limitada que possuem um senso comum de interdependência e integração, que convivem de modo associativo desfrutando relações recíprocas e benefícios em defesa do comum.

Zygmunt Bauman define a comunidade como o lugar que sentimos, coisa boa, cálido, confortável e aconchegante. Nela podemos relaxar, estamos seguros, entendemos o bem, podemos ter discussões amigáveis, confiamos no outro. A comunidade é o oposto de sociedade que pode ser má e a realidade é declaradamente não comunitária. O termo comunidade soa como música, evoca tudo que sentimos falta. Ela é o paraíso perdido ou o paraíso esperado.

A comunidade pode ser vista como uma contraposição a sociedade que provoca inseguranças, deixa de lado a justiça distributiva, a defesa da igualdade de direitos, perpetua as desigualdades e as diferenças sob a rubrica dos afortunados (Lucas 11,29). O contrassenso ético atuante na sociedade incrementa a indiferença e o distanciamento dos afortunados que não precisam mais de comunidade. Este comportamento é tão prejudicial a ponto que os afortunados não conseguem mais entender o que ganhariam na e com a comunidade. Para estes, a comunidade é espaços dos fracos, dos indivíduos de jure ou dos incapazes de praticar a individualidade e de resolverem seus problemas.

O teólogo José Comblin na década de 1970 já havia apontado a dificuldade teológica e sociológica quanto à concepção do conceito de comunidade. E, o conceito de comunidade é um dos pontos de encontro e de atrito entre a teologia e a sociologia. Em parte, pelo fato do interesse crescente da teologia e da sociologia moderna a palavra comunidade se reveste de muitos significados distintos. Mas, a questão  comunidade é um assunto de predileção da eclesiologia e dos agentes empenhados na renovação pastoral.

Para o teólogo, no sentido eclesiológico, a comunidade é a fusão afetiva realizada em atividades comuns e expressivas. Ela é o contrário da sociedade. A sociedade é fria. A comunidade é quente, coletiva, feita de relações horizontais do communio inter ou da comunhão entre. Comunidade é o relacionamento interpessoal do eu-tu-nós-vós, contrário da associação e da sociedade onde as relações são impessoais e frias.

Comunidade cristã é a communio da vida em comum ou entre, a fusão afetiva e adesão total ao grande Mestre, Jesus de Nazaré (Marcos 3,13-19) com qual, celebrou sua Páscoa redentora. Por ser tão significativa, o Mestre deixou para sua comunidade de seguidores o mais importante mandamento, o amor. O amor feito doação ou serviço ao próximo como demonstrou o Mestre ao lavar os pés de seus discípulos (João 13,1-15).

Na comunidade que vive o mandamento de Cristo nos sentimos em casa, acolhidos e estamos no lugar aconchegante. Se tudo cambia que seja para transformar o mundo numa grande comunidade, a nossa casa. A isto chamaria de moderno, novo, nosso futuro.

Sobre o autor

Miguel Debiasi

Frade da Província dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul. Mestre em Filosofia (Universidade do Vale dos Sinos – São Leopoldo/RS). Mestre em Teologia (Pontifícia Universidade Católica do RS - PUC/RS). Doutor em Teologia (Faculdades EST – São Leopoldo/RS).

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