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Solidários e destruidores

Miguel Debiasi

O filósofo francês Pierre Du Nouy escreve: “não existe outra via para a sociedade humana senão a solidariedade e o respeito da dignidade individual”. Solidariedade e dignidade são valores sociais, éticos e centrais do Evangelho. A solidariedade reúne as pessoas, as comunidades, as nações, em prol da mesma causa, do bem comum, do bem de todos.

A célebre dialética do Senhor e do Escravo apresentada pelo filósofo Hegel na Fenomenologia do Espírito tornou-se no pensamento filosófico de Karl Marx uma chave de leitura da história universal.  Em Hegel a dialética do Senhor e do Escravo descreve a configuração das sociedades ocidentais, desde a sua origem grega como sociedades políticas. Diga-se da sociedade do reconhecimento, sobretudo, do Senhor e da posição social do escravo.

Já para Karl Marx, na dialética de Hegel, a morte do Escravo anularia a condição de Senhor, do vencedor, do reconhecido. Para superação dessa lógica social, será preciso intervir no processo de autodestruição do escravo, para tanto, destruir a força opressora a fim de antecipar esse fim. Tal propósito social exigirá a solidariedade entre os proletariados, classe operária, segundo Marx.

O termo solidariedade em sua etimologia latina solidum significa totalidade, segurança, ou solidus, representa o sólido, inteiro. Isto aplicado em termos sociais significa empenho pelo bem comum. Ou seja, solidariedade é a ação pelo bem de todos e de cada indivíduo, de sermos todos responsáveis uns pelos outros.

A Organização das Nações Unidas (ONU), busca promover a cultura da solidariedade entre as nações. Para implementar essa cultura, estabeleceu--se o dia 20 de dezembro como o Dia Mundial da Solidariedade Humana. Nessa data a ONU por meio de acordos internacionais incentiva os governos para a prática de ações de superação das problemáticas mundiais, como a pobreza.

Muitos teóricos refletiram a temática da solidariedade como Émile Durkheim (1959-1917) sociólogo francês, considerado o “pai da Sociologia”. Para Durkheim o que une os indivíduos à sociedade é a solidariedade. A identidade social é constituída pela aproximação das pessoas, pelas crenças comuns e por valores sociais que determinam qual padrão deve ser seguido, isto Durkheim denomina solidariedade mecânica. A transformação social enfraquece e a solidariedade mecânica passa a ser substituída pela solidariedade orgânica. Esta representa a evolução da consciência enquanto sociedade do bem comum.

O filósofo australiano Peter Albert David Singer (1946), ao pesquisar a desigualdade social, demonstra que os países ricos consomem muito mais em quantidade do que os países pobres, sendo esses em maior número. Se uma parcela dos ricos utilizasse 2% da sua fortuna, o que não afetaria a sua riqueza, resolveria o problema da fome no mundo. Somente a consciência solidária poderia transformar a cultura do desperdício, do consumo exacerbado e da indiferença social.

O professor César Eugênio da Universidade de São Francisco de Taubaté (UNITAU), São Paulo, defende que é necessário incorporar às pessoas o sentimento de ser útil no mundo. A solidariedade é predisposição de despojamento e do encontro com o outro, a percepção e a consciência de que o outro compartilha da mesma vida que nós. A solidariedade desenvolve a consciência do despojamento, do encontro, da percepção que o outro dá novo significado à vida pessoal e coletiva.

A teologia cristã argumenta que os seres humanos foram criados para serem solidários. Todos os seres humanos estão interligados, de maneira que o que acontece com uma pessoa, com um grupo, com uma nação, afetará todos os outros entes. Este princípio vale também para os seres não-vivos. Há uma interdependência entres todos os seres vivos e não-vivos que hoje passa despercebida para a grande maioria das pessoas, para os sistemas educacionais e éticos. A solidariedade é a consciência ética e a ação em prol do bem comum, do qual depende o desenvolvimento da sociedade como uma coletividade integrada.

O teólogo Leonardo Boff diz que a ética, derivada do grego – ethos designa a morada humana. Por sua vez, a morada humana é algo a ser construído, que torna habitável para si e para outros, trata-se de um estilo de vida comum, o solidário. Em contrapartida, toda falta de solidariedade sustenta uma ideologia, uma estrutura dominadora e opressora, fere a morada humana.

A consciência solidária pode ser vista pelas ações e iniciativas de socorro às vítimas das enchentes do Estado do Rio Grande do Sul. Nas inúmeras iniciativas desde doações de alimentos, vestuário, bebidas, dinheiro, recursos humanos como mão de obra e materiais para a reconstrução das cidades. Demonstrou-se uma solidariedade não mecânica, mas orgânica, aquela da extensão social, do proporcionar vida coletiva harmonizada, do sentimento de pertencimento à nação, enfim, do encontro com o Outro, o desconhecido, o diferente, o necessitado. Pela solidariedade cada indivíduo sente-se um ser importante, que dá vida ao coletivo.

Embora louvável a tamanha solidariedade, será preciso fazer uma reflexão da tragédia causada pelas enchentes nos meses de abril e maio. A solidariedade também é percepção do Outro, das pessoas, dos grupos e de suas ações. As enchentes nos dizem que somos demais tolerantes às ações e aos meios de produção de capital que causam o desequilíbrio do Meio Ambiente, o aquecimento global, o aumento da temperatura, a poluição e outros. Elas denunciam os avanços das tecnologias de produção implementadas em nome dos negócios, dos ganhos de grande parte delas, na contramão de uma produção sustentável e ecológica.

As toneladas de lixo boiando sobre as águas turvas demonstram que ainda estamos longe de uma cultura ecológica. Áreas habitacionais à beira dos rios acusam a frágil política da urbanização e da situação social de milhares de famílias condenadas a viverem na periferia existencial.

Assim, como somos solidários, somos destruidores. Irrefutavelmente, a cada ato de destruição do Meio Ambiente demanda uma ação mais exigente de solidariedade. Infelizmente, a ciência metrológica a tempos vem alertando que as tragédias poderão ser mais eminentes, algo que poderia ser evitado. Diante da grandeza do presenciado, vale dar ouvido à ciência, e se assim fizermos, a solidariedade deixará de ser grito de socorro.

Sobre o autor

Miguel Debiasi

Frade da Província dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul. Mestre em Filosofia (Universidade do Vale dos Sinos – São Leopoldo/RS). Mestre em Teologia (Pontifícia Universidade Católica do RS - PUC/RS). Doutor em Teologia (Faculdades EST – São Leopoldo/RS).

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