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Rebobinando a fita

Gislaine Marins

 

É preciso ter uma certa idade para usar expressões como “tá na fita”, “rebobina a fita”, “ver a fita”, mas também expressões como “fazer fita”. Nesse tempo suspenso, em que tudo parece parado enquanto acontece o surdo movimento das ondas, detectável nos círculos excêntricos dos espelhos d’água, eu acordo sobressaltada pensado naquele longo período conhecido como Guerra Fria.

Era um período em que tudo parecia pronto para explodir, em que conflitos pipocavam em várias partes do mundo, em que os escândalos exerciam um papel fundamental no equilíbrio de forças, em que medidas infralegais passavam de baciada em nome da segurança, em que o controle era considerado um mal menor, a corrida nuclear era tratada como condição para a paz. Era o tempo em que o muro de Berlim estava de pé e, apesar dos protestos, continuava lá, como símbolo de uma guerra sempre pronta para ser deflagrada novamente.

Era o período em que os palavrões e principalmente os roteiros medíocres enchiam os cinemas nacionais, a fim de garantir uma fachada de liberdade. A liberdade de ser vulgar. Era o tempo em que a passagem da infância para a adolescência passava por ouvidos colados às portas, a espreitar os comentários dos adultos. Nunca houve educação das emoções. Nunca houve preocupação com a nossa vida psicológica, com as nossas dúvidas e fragilidades. A igualdade de gênero permanece uma miragem no horizonte, uma utopia feminista. Crescemos na cultura da fraquejada, acostumamo-nos a galgar pequenos espaços sociais ouvindo cobranças de excelência. A gentileza era um souvenir reservado aos submissos. De que nos surpreendemos agora que os nossos coetâneos explicitam despudoradamente a sua violência e as ideias mais autoritárias em nome da liberdade e da própria ignorância histórica?

A formação era pautada pelo estilo dominante na época: falso moralismo e educação para o dedo-durismo. Por um lado, a curiosidade diante das proibições era irresistível. Por outro lado, a descoberta dos delitos caseiros, era a ocasião para fazer aflorar os pequenos ditadores encarnados nas figuras de pais, tios e avós, buscando culpados e incentivando a delação premiada. Não, nada do que hoje recebeu nome e foi devidamente delimitado pelo jargão técnico surgiu sem a base cultivada durante a nossa infância sob o regime ditatorial.

Rebobinando a fita, paro naquele momento em que uma votação na Câmara dos Deputados dá espaço para que um deputado faça uma homenagem a um torturador. E não aconteceu nada. Poucos se escandalizaram. A maioria invocou o direito à liberdade de expressão. A maioria endossou o seu apoio por meio do voto.

Rebobino a fita para o ano de 2013. A mente é um órgão que nos conduz por caminhos estranhos. Não penso no Brasil. Penso na Síria. Lembro de uma freira na Síria, que naqueles dias relatava como o país tinha sido alvo de uma onda de ódio crescente. Os cristãos na Síria são uma minoria, praticamente invisíveis numa sociedade multicultural. Contudo, até o início da nossa década, a diversidade religiosa não era um entrave para um país que eu só conhecia pelos livros e pelos filmes, mas não por isso deixava de exercer sobre mim uma atração misteriosa. Uma atração que sinto também pelo Irã, desde a minha infância proibido aos sonhos ocidentais, acessível apenas por livros da tradição como As mil e uma noites e por poucos filmes e livros contemporâneos.

De repente, na Síria, diferentes correntes muçulmanas entraram em conflito. Primeiro, era divisões, protestos; depois começaram as perseguições; por fim, o conflito aberto e a guerra. Para além do nível político e militar que costumamos ler pelos jornais, o germe do ódio e da divisão e do ódio foi infundido na alma das pessoas. Sunitas contra alauitas, então sunitas contra xiitas, então muçulmanos contra cristãos. O horror, como todos sabem, atingiu outras minorias religiosas, como a dos curdos e dos yazidis, com os terríveis estupros de guerra, que levaram à formação de uma brigada militar feminina que não lutava apenas por motivos políticos, mas pela própria vida da comunidade.

O problema é que sou ingênua: não penso que os períodos de pacífica conviência sejam uma exceção ao eterno jogo do poder. A convivência é a nossa essência, traída constantemente pela pornopolítica, por uma educação ao ódio, ao conflito, à divisão, à falsa moral. Dividem e imperam, destruindo a vida das pessoas. Odeia teu irmão: é isso que as políticas autoritárias nos  impõem.

Contudo, teimo em acreditar que os seres humanos são guardiães da vida e não fomentadores da morte, a serviço de instrumentalizações de interesses internos e internacionais. Teimo em ver a tragédia humana como resultado de manipulações que sufocam as nossas melhores intenções. Diante das dificuldades, cedemos ao ódio, somos frágeis demais para investir na persistência e na esperança.

Rebobino a fita e penso no Egito, um país vítima de um golpe e um contragolpe no arco de poucos anos. Papiros, bibliotecas, faróis, engenharia, agricultura, diversidade ambiental, língua: de tudo o que esta grande nação ofereceu ao mundo, hoje nos resta a incógnita sobre o futuro. E o Brasil? Bem, o nosso país nunca foi uma nação do passado. Para nós, escolhemos o mito do futuro. Se estão apresentando os instrumentos mais funestos, que rebobinam a nossa fita para os períodos mais tenebrosos dos últimos cinco séculos, a nossa ousadia deveria colocar em campo as nossas melhores qualidades e energias. Sim, tudo parece insuperável, mas mesmo nos abismos mais profundos as ondas se propagam. E os sonares existem para alertar que é possível navegar ainda que não se veja o horizonte e o futuro. Só nos falta a coragem de fazer isso com a couraça do amor e da justiça, porque sabemos que o ódio destrói e impede qualquer perspectiva de reconciliação.

 

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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