Que Deus é este?
A historieta é terna. Um velho senhor de barba branca cuja nobreza se mostra na capa vermelha que ostenta, caminha pela praia. Em seu andar encontra-se com uma criança que, com uma minúscula concha, transvasa água do mar para uma poça. Admirado, o nobre homem pergunta ao menino o que está a fazer. Este, com um sorriso infantil, confessa seu propósito de esvaziar o mar. – Impossível! Exclama o nobre sábio. Ao que a criança lhe retruca: – É mais fácil para mim transportar a água do mar para esta cova do que para a tua razão compreender o inescrutável mistério da Santíssima Trindade.
Uma bela historieta. Mas não tão velha. Conforme o historiador Henri-Irinée Marrou, em seu livro “Saint Agustin et l’Ange”, as primeiras versões da narrativa datam do início do século XIII. O velho senhor de barba branca era apresentado como “um professor” anônimo que tentava explicar o Deus cristão que, sendo uno, é, ao mesmo tempo, trino. A narrativa surge no contexto de desconfiança de clérigos ante a nascente teologia escolástica que argumenta não mais a partir da autoridadeeclesiástica, mas da racionalidade acessível a todas as pessoas.
Foi na segunda metade do século XIII que Tomas de Cantimpré, para dar autoridade ao exemplo, inseriu a figura de Santo Agostinho, considerado até então a maior autoridade teológica da Igreja no Ocidente, como o personagem principal da história. A inclusão do bispo de Hipona foi exitosa e logo a nova versão se popularizou e passou a ser usada tão amplamente que ganhou status de história real. Teólogos nem sempre cuidadosos de suas fontes e pregadores em busca de argumentos para emocionar seus ouvintes, dela fizeram uso abundante para advertir os fiéis dos perigos da razão.
A arte deu sua contribuição à popularização da legenda. Sandro Botticelli, um dos mestres do Renascimento e apaixonado pela figura de Agostinho, imortalizou a cena no Retábulo de São Barnabé. A partir de então, múltiplas versões surgiram nas diferentes escolas artísticas e, com a difusão da imprensa, passaram a ilustrar catecismos e manuais apologéticos.
Ainda hoje, quase mil anos depois, é quase inevitável escutarmos, na Festa da Santíssima Trindade, a legenda ser mais uma vez repetida e ilustrada, agora nas páginas da internet e nas redes sociais. Por que ela perdura tanto no imaginário popular e nos sermões nem sempre bem preparados? A causa é simples e, ao mesmo tempo, grave. Ela ilustra uma questão presente em toda experiência de fé: a tensão entre a fé e a razão.
Na narrativa medieval, a solução se dá pela derrota da razão. Fracasso ainda mais calamitoso pois personalizado no teólogo por excelência, o bispo de Hipona. A historieta é um assassinato simbólico da razão teológica que perdura nos séculos. Agostinho dedicou boa parte de suas indagações teológicas à questão fundamental da fé: quem é Deus? Seu livro “Sobre a Trindade” é uma obra prima que esgrime todos os argumentos da razão até chegar à afirmação mais contundente e plena que alguém pode fazer da compreensão cristã da divindade: Deus-Trindade é Amor puro e pleno!
Diferentemente do que a historieta e as interpretações antirracionais que dela decorrem afirmam, o conhecimento de Deus não dispensa a razão. Pelo contrário, como bem pode notar quem se dá ao árduo trabalho de ler Agostinho,ele a supõe e exige. A razão não é o fim e nem tem a palavra última, com certeza. Mas, como dom de Deus, ela faz parte dos instrumentos que podemos usar para até Ele chegar.
Negar a necessidade e a utilidade da razão nestes tempos de irracionalidade surda, cega, tonitruante e orgulhosa de sua própria ignorância, é uma tentação à qual não podemos nos dar ao luxo, sob o risco de sermos engolidos pela voragem mortal do obscurantismo que ronda tribunas, microfones, cátedras e púlpitos.
A volta a Santo Agostinho, sem a mediação das legendas medievais, é um belo caminho para voltarmos a saborear a racionalidade amorosa da Trindade. Fica a sugestão!
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