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Pierre Menard, inventor do whatsapp

Gislaine Marins

Jorge Luis Borges conta os fatos literários da vida de Pierre Menard, o autor do Quixote, mas não a sua enfermidade. Obcecado pela ideia de recompor o Quixote de Cervantes tão fielmente a ponto de ser mais do que uma cópia perfeita, mas o próprio, o verdadeiro Quixote, Pierre Menard adoeceu. Tanto buscou trazer à luz o Quixote, o verdeiro Quixote, que terminou cego e mais tarde acabou perdendo também a razão.

Refugiado entre fonemas e pesquisas para a recuperação da língua de Cervantes, que alcançaria o auge em pouco tempo, no chamado Século de Ouro, Menard mergulhou no passado e criou um mundo paralelo, onde, segundo a sua última tese - não referida pelo narrador que compila a sua vida - o mundo no futuro seria composto por bolhas linguísticas interrelacionadas e autônomas em relação ao tempo. Era, como o autor, em seus dias derradeiros, uma tese doentia.

Contudo, em seu delírio, Menard soube prever a existência das redes sociais e teve a visão de que seus esforços pela recriação perfeita, verdadeira, seria revista à luz dos ensinamentos medievais, como uma operação de cópia, na qual a técnica da caligrafia seria substituída por dois comandos informáticos: clicar e compartilhar. A tecnologia, dizia, entre panos úmidos postos sobre a testa e o olhar piedoso das amigas, seria capaz, um dia, de recuperar perfeitamente a própria voz de Cervantes. Se alguém, ainda que bem intencionado, pensasse em criar frases inéditas, nuncas ditas pelo gênio espanhol, criaria um curto-circuito, um labirinto no qual se tornaria impossível separar Cervantes de Cervantes, visto que sob o nome de Cervantes estaria tudo, inclusive o seu Quixote, e se Cervantes era tudo, Cervantes seria nada. Os olhos cegos de Menard conservavam a expressão de horror que desmentia um delírio completamente independente da realidade. O golpe derradeiro foi a febre, em um verão particularmente sufocante em uma Paris despreparada para o calor, e para as alucinações. “O atiça pê! O atiça pê!” Foram as palavras derradeiras do mais humilde e dedicado leitor de Quixote, autor do Quixote, Pierre Menard.

Dizem que Walter Benjamin tenha tido notícias do delírio de Menard, sem o qual a sua ideia de reprodutibilidade não daria aquele salto conceitual que transforma a reprodução em massa em reprodução das massas. Anos mais tarde, um pesquisador de origem eslava com saudade da família inventaria um serviço cujo nome não tem qualquer sentido em latitudes cirílicas. Imigrante, ele usaria uma expressão do idioma de adoção, tal qual ouvia, quando perguntavam o que estava acontecendo, para nomear a sua criação: whatsapp?

Pierre Menard morreu. Mas não morreu.

P.S. 1. Este é um texto de ficção. 2. Professores de literatura e filosofia são necessários para as pessoas entenderem o que é uma brincadeira, o que é um fato e o que é um fenômeno perigoso e incontrolável de abuso da linguagem. 3. Tradução adaptada não existe. 4. Cópia existe. 5. Plágio também.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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