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Olhar para as favelas

Miguel Debiasi

A história do Brasil é composta de muitas narrativas. O Brasil dos belos e luxuosos palácios, mansões, condomínios e dos bairros nobres tem sua narrativa. Bem próximo a estes grandes centros de riqueza, poder, bem-estar, estão às favelas com suas narrativas sufocadas. Historicamente os estudiosos encantaram-se com a narrativa dos privilegiados e para estes não existe o outro lado. Em tempo de plurais leituras sociológicas, as narrativas são mais amplas, pelas quais a favela conta sua história.

 

O processo de construção das cidades espalhadas pelo Brasil é o mesmo, de um lado, estabeleceu-se a classe nobre e de outro, as classes populares. A construção de palácios, condomínios luxuosos, mansões, bairros nobres e a favelização brasileira, vem de um longo processo dinamizado por forças econômicas e políticas públicas. O país foi pensado e conduzido a partir dos interesses políticos e econômicos de seus privilegiados, a classe dominante. Esta usou de todas as estruturas políticas e forças sociais para implantar seus projetos e a realidade demonstra que isso é verdadeiro.    

 

No século XX a sociedade brasileira passou por três acelerados processos de transformação que produziram as cidades atuais: a industrialização da economia; a explosão demográfica decorrente do êxodo rural e da queda das taxas de mortalidade; e a urbanização da população expulsa do campo para as cidades na promessa de melhores oportunidades de vida. Este processo inicia nas décadas de 1940 tendo seu auge em 1980. Nesse período o Brasil era pobre em PIB per capita, pouco escolarizado e muito desigual. A população passou de 40 para 120 milhões e o percentual vivendo em cidades foi de 31% para 67%. O resultado foi um enorme contingente de brasileiros pobres, vivendo de forma precária nas cidades e destituídos de direitos sociais, que foram introduzidos apenas com a Constituição de 1988.

 

Esses três acelerados processos levaram a formação das cidades e consequentemente das periferias. É neste contexto socioeconômico que surgiram as cidades atuais. As pessoas que não tinham renda suficiente para pagar o aluguel de imóveis de mercado formal – registrados e licenciados – trataram de produzir para si mesmas a habitação de que necessitavam para suas famílias.

 

Em absoluto estado de pobreza e sem uma política pública de habitação e urbanização, a grande maioria das famílias brasileiras construíram suas casas em loteamentos irregulares e comprando lotes sem registro de grileiros. Desse contingente humano, uma relativa parcela acabou ocupando terrenos inadequados como planícies alagáveis e encostas íngremes, principalmente nas periferias da cidade formal. Essas áreas são regiões desprovidas da infraestrutura e dos serviços necessários para constituir uma cidade que precisa de uma mínima infraestrutura de: ruas e calçadas, energia elétrica, abastecimento de água, coleta de esgoto e de lixo, varrição, policiamento, transporte público, espaços de educação, cultura, lazer e de integração social.

 

A favelização do Brasil é fruto deste processo socioeconômico que historicamente favoreceu a classe dominante, em contrapartida, um enorme contingente humano desprovido das mínimas condições de habitação e urbanização ficaram reféns de seus projetos. O Morro da Providência, no centro do Rio de Janeiro, é considerado a primeira favela do Brasil. O povoamento do Morro iniciou em 1890, desde então, seus moradores se organizaram em busca de melhorias urbanas e de valorização social. Fruto dessa organização e luta foi à constituição do Dia das Favelas. Desde 1900, 4 de novembro é celebrado como Dia das Favelas. Este dia é comemorado como oportunidade de uma reflexão sobre os problemas enfrentados pelos moradores desses territórios, da capacidade e forças presentes neles e nas favelas.

 

Com o crescimento demográfico periférico criaram-se muitas organizações por iniciativas dos moradores como da Central Única das Favelas (CUFA), federações municipais, associações e outras. Atualmente 29% da população brasileira moram nas periferias e favelas, 8% vivem sem as mínimas condições habitacionais e de urbanização. As favelas são um território de valores humanos, espaços de solidariedade e de união social. Um dos instrumentos de luta da população periférica são suas organizações internas, pautando reflexões sobre: infraestrutura, geração de empregos, segurança pública, cultura, inclusão social, dignidade social, cidades projetadas e planejadas, as chamadas cidades universais.

 

Na estimativa da CUFA hoje 14 milhões de pessoas vivem em favelas. Para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2019, havia 5,1 milhões de domicílios em 13.151 mil aglomerados subnormais no país, localizados em 734 municípios, em todos os estados e no Distrito Federal. Em estado de extrema pobreza os moradores das favelas por meio de suas organizações como da CUFA, promovem ações de solidariedade a nível nacional. Essas iniciativas das favelas têm chamado atenção dos organismos nacionais e internacionais. Na pandemia de covid-19, através da CUFA as favelas promoveram a campanha de conscientização pela vacinação, constituíram postos de atendimentos a saúde pública, arrecadação de alimentos para a população e assistências às famílias vitimadas pelo vírus.

 

Em socorro ao povo Yanomami de Roraima desassistido pelo governo e as famílias da cidade de São Sebastião (SP), atingida pelas fortes chuvas e deslizamentos de encostas, a CUFA promoveu a campanha por alimentos, sendo a Organização Não Governamental que mais arrecadou e contribuiu no país. Há outros mutirões que a CUFA promove como assistência aos idosos, crianças, doentes, desempregados e socorro humanitário nas calamidades sociais. As iniciativas humanitárias das favelas dizem que é preciso olhar para elas com mais atenção e valorização. Nelas há vida humana pulsando, solidariedade, caridade, ensino e esperança cristã.

 

As favelas merecem todo tipo de atendimento público e ajuda porque os cidadãos favelados/periféricos constituem uma outra narrativa da história: dão claras provas que os pobres e humildes desejam construir um novo país, mais digno, justo, igualitário, preparado para todos os cidadãos, livre dos preconceitos e das discriminações históricas e sociais.        

Sobre o autor

Miguel Debiasi

Frade da Província dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul. Mestre em Filosofia (Universidade do Vale dos Sinos – São Leopoldo/RS). Mestre em Teologia (Pontifícia Universidade Católica do RS - PUC/RS). Doutor em Teologia (Faculdades EST – São Leopoldo/RS).

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