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O terço do Frei Francisco Pressi

Miguel Debiasi

O terço do Frei Francisco Pressi

O ser humano é transcendência. A caverna da temporalidade e da historicidade é também transcendental. Ir além da história temporal e da vida corporal é o horizonte do ser humano. A vida mundana termina, exceto a esperança e a fé na ressurreição da carne. Como não prender a vida na temporalidade e na historicidade? Os caminhos para esse desprendimento humano talvez sejam muitos e até desconhecidos, mas um está indicado, pela oração a Deus, abertura para a transcendência da vida.

Nenhum ser humano passará por esse mundo temporal sem a experiência de seus limites intelectuais, morais, corporais e espirituais. As crises que envolvem o ser humano são de todas as ordens: corporais, espirituais, materiais, psíquicas e outras. Os planos humanos temporais fenecem numa enfermidade corporal. Os projetos políticos e econômicos são seletivos e injustos. As relações dos homens com a natureza, com o ecossistema são de autodestruição. A ciência, conhecimento e tecnologias avançam, mas a natureza humana continua sendo a mesma, frágil e mortal (Salmo 8,5). Ainda que com acesso aos sofisticados recursos seja possível prolongar a qualidade de vida e sua longevidade, mas os anos são finitos. Todos caminharam para uma mesma direção na convicção cabal, não haverá retorno, recriar a vida é impossível. A luz no final do túnel para o ser humano é a esperança e a fé na ressurreição da carne.

A consciência da vida mortal convida a não confiar nas capacidades humanas, mas na misericórdia de Deus pela sua Criação, pelos humanos como os prediletos de seu amor (Mateus 12,7). Há uma sede em todos os humanos, seja nos sábios e iletrados, nos cultos e incultos, nos crentes e não crentes, de alcançar algo mais para a vida temporal, corporal, terrena: o encontro presencial com o Deus Criador (Salmo 42,2). Para todos há um caminho transcendental que conduz para a vida imortal que é visível neste mundo temporal, terreno, histórico, pela fé em Cristo enviado do Pai e pela justiça e solidariedade aos pobres (Mateus 7,14).

A fé em Jesus enviado do Pai estabelece uma relação de mútua confiança entre a pessoa e Deus: “Pedi e vos será dado; buscai e achareis; batei e vos será aberto; pois todo o que pede recebe; o que busca acha e ao que bate se lhe abrirá” (Mateus 7,7-8). A relação humana com Deus se fortalece pela oração, pela prática da justiça e especialmente pela caridade prática com o pobre. O termo “orare”, do latim significa pedir, rezar, orar a Deus e a Santíssima Trindade. Desde a antiguidade as religiões criaram ritos litúrgicos para dirigirem suas orações a Deus, essa prática é mantida e reinventada em todos os tempos. O filósofo grego Platão (428-347 a.C.), dizia que o homem pode fazer de melhor para a sua felicidade é pôr-se em harmonia constante com Deus.

No percurso da história da salvação, muitas orações foram dirigidas a Deus. Abraão como primogênito da fé, construiu um altar para dirigir sua oração a Deus (Gênesis 22,14). Moisés chamado por Deus para libertar o povo hebreu da escravidão do Egito sobe a montanha para rezar durante quarenta dias e noites (Êxodo 19,3). Jesus ao receber o batismo de João nas águas do rio Jordão retirou-se para a montanha para quarenta dias de oração a Deus Pai para depois retornar a planície e anunciar a Boa Nova do Reino dos Céus (Lucas 4,1-2). Os discípulos escolhidos para dar continuidade ao anúncio da Boa Nova do Mestre pedem: “Senhor, ensina-nos a orar, como João ensinou a seus discípulos”, e Jesus lhes ensina a oração mais universal, o Pai nosso (Lucas 11,1-4). A oração é elevação humana para realizar a obra de Deus Pai.

Nos primeiros séculos de cristianismo além da celebração eucarística litúrgica, os cristãos rezavam recitando ou cantando os 150 salmos. Os 150 salmos bíblicos eram as orações diárias, sobretudo das comunidades de vida monástica. Por volta do ano 800, surgiu entre os leigos a prática de recitarem diariamente 150 “Pais nossos”. Para contar às vezes que repetiam a oração usam uma bolsa de couro com 150 pedrinhas. Mais tarde começou a ser usado um cordão com 150 pedacinhos de madeiras para contar a oração. É bem provável que essa prática orante deu origem ao que chamamos de terço. Hoje, certamente, o terço é a oração devocional mais recitada dos católicos.

O capuchinho frei Francisco Pressi, frade muitíssimo devoto à Virgem Maria, recita o terço muitas vezes por dia. No amanhecer do dia, antes que os confrades acordem, encontra-se frei Francisco na capela com o terço nas mãos rezando a Virgem Maria. Para reiniciar os trabalhos a tarde vê-se frei Francisco na capela rezando a Virgem Maria. No final do dia antes recolher-se aos seus aposentos para o descanso, na capela está Frei Francisco para a reza do santo terço. Nas tardes dos dias santos frei Francisco dirige-se à gruta de Nossa Senhora de Lourdes para rezar o santo terço. Em sua oração do terço os pobres do mundo inteiro estão sempre lembrados.

A oração da Ave-Maria dirigida a Nossa Senhora, Mãe de Jesus Cristo e da Igreja, originalmente foi à oração do Anjo Gabriel que rezou: “Ave, cheia de graças”; “O Senhor é contigo” (Lucas 1,28); e de Isabel, sua prima que reza: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre”; “Donde me vem a honra de vir a mim a Mãe do meu Senhor”?; “Bem-aventurada és tu que creste...” (Lucas 1,42-44). E a própria Virgem Maria completa a oração: “Todas as gerações me chamarão bem-aventurada” (Lucas 1,48).

Frei Francisco se dirige constantemente a Deus rezando a Santa Maria, Mãe de Deus. Recolhido em ambiente silencioso, muitos terços são recitados diariamente. Frei Francisco faz do seu tempo e de sua história uma vida transcendental, vai além das horas do dia, vive a perfeita comunhão e obra de Deus confiando-se a Mãe, Virgem Maria.  

Sobre o autor

Miguel Debiasi

Frade da Província dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul. Mestre em Filosofia (Universidade do Vale dos Sinos – São Leopoldo/RS). Mestre em Teologia (Pontifícia Universidade Católica do RS - PUC/RS). Doutor em Teologia (Faculdades EST – São Leopoldo/RS).

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