O inventor de palavras mortas
O português é uma língua incrível. Sendo falada em quatro continentes, o nosso léxico cobre praticamente todas as latitudes do planeta. Poderíamos até dizer: o sol jamais se põe no nosso idioma. A qualquer hora do dia e da noite haverá alguém falando português no mundo: para fazer uma promessa de amor, para chorar uma dor, para socorrer alguém, para acreditar, para persistir.
Nem tudo, porém, são flores no universo do nosso falar. Há palavras ameaçadas pelo esquecimento e outras que foram abandonadas por sua inutilidade. Há palavras mal compreendidas, porque às vezes queremos entender apenas aquilo que gira em torno do nosso umbigo e esquecemos os matizes, os saberes e as culturas daqueles que talvez nem estejam em outro país, mas apenas em outro Estado. Ignoramos muito e ouvimos pouco. O que além de um defeito, pode ser uma oportunidade.
De tudo o que acontece na língua, matéria viva, impregnada de tons e suspiros, de cheiros e de arrepios que sentimos como uma brisa nos ouvidos, o que mais me preocupa são as palavras mortas. No entanto, cabe uma distinção: uma coisa são palavras eternas; outra coisa são palavras mortas, que assombram pelo seu poder de criar rupturas com a realidade. Palavras mortas também não são palavras criativas, nem tampouco palavras imaginárias, que servem para gestar o futuro.
Palavras mortas são colocadas em circulação por seus criadores para que as pessoas percam os laços que as unem a um contexto. Quando as palavras são mal pronunciadas, não por problemas de articulação, mas por intenção de que as coisas não sejam compreendidas, cria-se uma palavra morta. Palavra inútil, danosa, feita para minar o sentido das palavras que possuem consenso. Quando falsificamos uma palavra, matamos a sua história e a sua semântica, tendo de recorrer a dezenas e centenas de outras palavras para reconstituir sentidos e desfazer o que foi arruinado. Quando as pessoas usam palavras no sentido próprio com o claro objetivo de enganar o interlocutor, matam o sentido da palavra credibilidade, que por sorte é como um gato com sete vidas. Há, porém, palavras mortas que conseguem ser ainda mais perigosas, pois os seus inventores criam para elas sentidos que abalam tudo o que conhecemos e nos desafiam a acreditar em coisas que podem ameaçar a nossa própria vida.
O que dizer de quem inventa palavras para afirmar que a Amazônia está mais verdejante do que nunca, que os nossos indígenas são os mais tutelados das Américas, que os nossos produtos agrícolas são seguros e legais, que o nosso ouro é explorado sem riscos para a nossa saúde? É um inventor de palavras mortas. Palavras perigosas: que envenenam o nosso prato, destroem o nosso meio ambiente, colocam em risco o solo e as águas e atingem em cheio a nossa ética.
Não podemos perceber palavras mortas e ficar calados. Todo crime clama por justiça, ainda que seja um crime linguístico. E talvez porque seja um crime linguístico: pois é mentindo, inventando, enganando, omitindo que as realidades tomam corpo. Toda palavra adquire materialidade, transforma-se em pensamento, em proposta, em ação. Há palavras que se tornam leis e que, justa ou injustamente, são impostas. Imaginem o que pode acontecer na nossa língua se os fazedores de realidades, com suas ordens, projetos e decretos, forem também inventores de palavras mortas. Imaginem, então, o que podem fazer com a nossa vida:
(Que falta nos faz Clarice Lispector, inventora de narrativas que colocam em crise o sentido de completude do texto. Inacabar era a sua especialidade, esperando que o leitor assumisse o seu papel ao virar a última página de cada livro. Assim, também esses dois pontos são um convite: que de palavras mortas já temos demais no mundo, e é hora de reconhecê-las, e de enterrá-las, e de dar espaço àquelas que podem transformar os nossos horizontes.)
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