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Muros de carne

Gislaine Marins

Porto Alegre possui um muro cantado em prosa e verso, que separa a cidade do seu rio e do risco de inundações. Sei que o Guaíba é um lago, mas o coração deve ter o direito de seguir os seus próprios tormentos conceituais. Lago ou rio, o fato é que o muro não foi capaz de poupar a cidade quando anos atrás foi alagada como não se via desde os anos quarenta. Lago ou rio, cada qual deve ter o direito de seguir a semântica da própria sensibilidade para perceber os muros que nos separam.

Não conheço, no Brasil, outro muro tão famoso. A nossa colonização privilegiou o latifúndio e a sua economia, que transformava cada fazenda em uma unidade autossuficiente, delimitada pelas suas cercas. No entanto, as propriedades eram ampliadas constantemente pela ambição dos colonizadores: as cercas nunca representaram limites para os proprietários de terras.


A maioria das nossas cidades teve um desenvolvimento tardio, na medida em que, por muito tempo os nossos portos eram instrumentos da economia latifundiária, onde a vida dos senhores de engenho prosperava às custas da escravidão de homens e mulheres arrancados à força das suas aldeias e do seu continente de origem. A segregação causada pela escravidão foi a primeira etapa de um sistema que criou muros de carne humana na nossa sociedade.


Ao contrário das cidades europeias, onde os muros delimitavam o perímetro das comunidades e das suas respectivas identidades culturais, as nossas cidades criaram uma cartografia que pode ser identificada pela cor da pele e pela classe social. Os nossos muros, sendo invisíveis do ponto de vista arquitetônico, devem ser abatidos pela força do conhecimento e da responsabilidade. Para fazer isso, seria necessário pensar na profunda desigualdade que marca a nossa história.


Seria preciso uma escola que derrubasse os muros da desigualdade, que eliminasse os nossos guetos sociais. Seria preciso uma escola de ricos para os pobres e uma escola de pobres para os ricos. Onde os pobres pudessem receber todas as oportunidades que as escolas pobres não oferecem em termos de estrutura e onde os ricos tivessem a oportunidade de superar todas as barreiras sociais e preconceituosas que não existem no seu contexto escolar homologado pela abundância. Não é apologia do sofrimento, é empatia que destrói o egoísmo de classe.


A nossa arte, em especial a arte popular, ou seja, o nosso samba, o nosso folclore, a nossa capoeira, o nosso carnaval, criam dia após dia ferramentas para libertar as nossas mentes do preconceito, da indiferença e das armadilhas que permitem a perenidade dos nossos muros humanos. Fazem tanto, mas não podem fazer tudo: é necessária a política, a representação parlamentar que coloque em prática os bons propósitos que possuímos e nos quais acreditamos. É inútil defender boas ideias com a boca e atacá-las com o voto, elegendo quem defende a desigualdade, a privatização das terras públicas, a exploração desmedida do nosso território, demarcando os confins internos pela etnia, pela fome e pela ignorância.


Há muros que protegem e salvam, há outros que destroem e separam. Todos nós, porém, possuímos a responsabilidade de fazer distinções. A pobreza que vemos aumentar a cada dia não é uma fatalidade, é uma escolha que todos fizemos e sobre a qual todos temos o dever de assumir a culpa.


Todavia, como diria Machado de Assis, o mal está feito: vamos às histórias dos subúrbios. Se fôssemos realmente às nossas periferias, teríamos pavor da nossa crueldade em deixar para trás seres humanos que só foram excluídos por terem nascido na classe social errada. Teríamos vergonha das ilhas de miséria que nos rodeiam. Provemos a sentir por um instante horror da nossa indiferença. Depois podemos discutir se o Guaíba é um lago ou um rio, e analisar o que ele separa e o que une.

 

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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