Mitos fantasiosos não sobrevivem
Com o avanço do conhecimento científico, cada vez mais apreciamos antigos escritos da civilização. O esforço é pela busca de remotos vestígios dos tempos da pré-história. Há um fascínio científico a cada descoberta da originalidade cultural. Todo esforço de voltar atrás milênio antes de Cristo, tem a preocupação central de nos situarmos no tempo e na história. O recurso fundamental para situarmos é a busca de documentos como das origens da escrita. Essa busca é uma questão interminável.
Segundo os historiadores a escrita iniciou na pré-história, período entre quatro a três mil anos antes de Cristo. Nessa época as pessoas desenhavam nas paredes das cavernas pinturas constituindo-se uma forma de linguagem, comunicação e transmissão de ideias entre os povos. Pelas artes, as civilizações da Mesopotâmia, China, Egito e América Central de forma independente e de períodos distintos foram desenvolvendo sistemas de escritas. No percurso histórico, a escrita foi se aperfeiçoando nas formas de comunicação e de compreensão. Em nosso tempo, a evolução da escrita deve-se às novas tecnologias e acesso ao computador, facilitando o uso das letras digitais.
Para historiadores e antropólogos a primeira escrita gravada em paredes comunica o sofrimento do homem pré-histórico e seu caráter sapiencial, teológico e litúrgico de composição de hinos às divindades. Nesse período inicial da escrita, foram elaboradas as narrativas mitológicas que exigem adequadas metodologia e hermenêutica. A narrativa mítica usa linguagem e expressões que designam uma visão de mundo de conjunto e uma unidade gnoseológica ou teoria de conhecimento. Tanto a etnografia, como os estudos das religiões e bíblicos deparam-se com narrativa mítica.
O teólogo o alemão Rudolf Karl Bultmann (1884-1976), especialista em estudos bíblicos do Novo Testamento, em seus estudos propõe em vez de “mitos” ver nessas narrativas a mentalidade mítica, que no seu conjunto confunde o humano com o transcendente e o natural com o sobrenatural. Essa confusão de níveis é própria da mentalidade acientífica, exigindo do estudo moderno a desmitologização. Esse estudo não significa destruir a narrativa mítica e os mitos, mas aceitar os seus aspectos positivos para o desenvolvimento da civilização.
As civilizações antigas criaram o gênero literário mítico para explicar questões como as origens da existência humana, do mundo, de Deus e outras. Nas narrativas religiosas míticas o argumento é pelo inefável ou indescritível de suma importância para o ser humano. O biblista José Salguero diz que na antiguidade, o mito parece ser o método mais adequado e pedagógico que o ser humano tinha para penetrar no terreno divino. Na dificuldade da linguagem abstrata recorre-se à mítica, simbólica. A linguagem mítica possibilita maior liberdade na escolha de argumentos e de modos próprios ou métodos de narrativas. A mitologia tem sua própria lógica, uma força interpelativa maior que sua função informativa. Ainda que transpareça exageros da fantasia, relativa a deuses, seres e universo, haverá certamente algo de verdadeiro na mitologia.
Nas narrativas bíblicas a muito de mitologia, como o nome de Deus Bíblico, Javé. O célebre texto do livro do Êxodo, apresenta o nome de Deus constituído pelas quatro consoantes YHWH, que significa ser “eu sou aquele que é” (Êxodo 3,14). O nome de Deus já era conhecido entre os filhos de Seth (Gênesis 4,26; Número 24,17). Apesar de algumas obscuridades e dúvidas sobre o nome, os textos bíblicos de caráter mítico afirmam que Deus é um Ser Absoluto que existe por si mesmo. A criação realizou-se pela força de Sua palavra, bastou dizer – faça-se e assim se fez (Gênesis 1,3-26). Essa narrativa demorou séculos para ser elaborada e isso supõe um processo de humanização da natureza que vai muito além do ser humano.
O filósofo francês Gilles Lipovetsky descreve a sociedade contemporânea com sua narrativa de socialização pela escolha, imagem, sentido e através da comunicação publicitária, do consumo e do psicologismo. A sociedade contemporânea manipula racionalmente a vida individual e social e transforma tudo em artifício e ilusão a serviço do lucro capitalista e da classe dominante. A narrativa contemporânea é da lógica econômica e do império do efêmero. O mercado capitalista usa da narrativa que impõe a liberdade ilimitada, na qual sua ideologia constrói agentes segundo seu ponto vista, do livre mercado como sistema vitorioso, frente ao qual não haverá alternativas. A narrativa da concorrência está em todos os níveis e produz tecnologias, produtos e as pessoas são parte desse mercado autorregulador do progresso e da história.
A mitologia grega, egípcia, bíblica, chinesa e outras, reúne um conjunto de lendas e mitos elaborados para explicar muitos fatos de suma importância para a humanidade, como a origem da vida, a vida após a morte, fenômenos da natureza e outros. As narrativas mitológicas e os mitos descrevem a antiga civilização que expressa desejo de conhecimento para libertar o homem das ignorâncias e viver assegurados pela maior compreensão. Assim, do passado sobrevive o mito-verdade. Aquela narrativa que exprime uma verdade por meio de uma argumentação metódica que buscou explicar o universo e os fenômenos como a vida, a morte, o bem, o mal e outros. O mito era o primeiro degrau no processo de compreensão dos sentimentos religiosos mais profundos do homem e o protótipo da teologia e da filosofia.
Os estudos científicos não recorrem mais às figuras míticas, porque não tem valor prévio e firmemente estabelecido de forma explícita do logos, ou seja, que tem explicação racional. Para os estudiosos contemporâneos, a mitologia e o mito da humanidade primitiva simbolizam o tenso significado religioso, filosófico, cultural e teológico. Os estudos modernos trabalham com a razão, com os argumentos racionais, fornece uma explicação exaustiva das coisas e não haverá espaço para a invenção de novas mitologias e mito não sobrevive. A verdade é mais ciência e menos mitologia.
Libertar-se das mitologias que persistem nas instituições, no governo, nas festas, nas artes, na literatura, na conversa cotidiana, nos valores morais-religiosos, nos templos e outros, é libertar-se das falsas seguranças culturais. Libertar-se da prisão cultural é sentir-se livre como os três jovens Sidrac, Misac e Abdênago do livro de Daniel no meio da fornalha, livres em face ao rei da Babilônia (Daniel 3). Todo ser humano livre daquilo que o pressionava na passividade, no fanatismo, na ignorância, emancipa-se para uma vida e cultura religiosa de liberdade como faz Jesus de Nazaré (Lucas 18,35-43).
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