Fratellii Tutti – Extra Misericórdiam Nulla Salus
Fratelli Tutti se situa explicitamente na corrente do Ensino Social da Igreja. Ela se propõe a orientar o viver e o agir dos cristãos no mundo de hoje. E o faz a partir da fé, de uma leitura teológica da realidade e da ação necessária para transformá-la. Entre os muitos elementos teológicos presentes no texto, dois se destacam. Um de fundo e outro operacional. O primeiro responde à questão “por que ser irmãos e amigos”. A resposta é simples: porque somos filhos do mesmo Deus que é Pai de toda a humanidade. Desde a referência inicial a Francisco de Assis até a Oração Ecumênica final onde invoca “Deus nosso Trindade de Amor”, este motivo está explicitamente presente.
Mas o mais provocador e longamente tratado é o “como ser irmão e amigo”. É o teológico operacional da Encíclica e ocupa todo o segundo capítulo. Trata-se do Princípio Misericórdia. Esta é uma expressão elaborada pelo teólogo jesuíta Jon Sobrino, que é, inclusive, título de um livro seu. Para quem segue os passos, as falas e os textos do Papa, a argumentação não é desconhecida.
Em seu terceiro ano de pontificado, em 2015, como todos lembramos, o Papa Francisco proclamou um Ano Santo Extraordinário. Na Bula “O Rosto da Misericórdia”, o texto que faz a conexão com o Concílio Vaticano II é o do samaritano. João XXIII, ao convocar o Concílio, afirmou que a misericórdia é o modo como a Igreja deve situar-se no mundo moderno. Essa mesma parábola, tão rica em imagens e ensinamentos, é retomada como paradigma para a construção de uma nova humanidade e uma nova sociedade.
O marco da parábola é um diálogo entre Jesus e um perito em leis. Este pergunta a Jesus o que deve fazer para alcançar a salvação. A parábola com a qual Jesus responde todos a conhecemos... e por isso vamos diretamente ao fim quando Jesus, diante do desconcertado legista, cita uma frase do Livro dos Provérbios: “Fazer misericórdia e fazer justiça agrada mais a Deus do que oferecer muitos sacrifícios”. Todos lembramos que, na parábola, um sacerdote e um levita haviam passado pelo caído sem fazer nada porque tinham que ir ao Templo oferecer sacrifícios. Com uma simples narrativa, Jesus coloca em questão todo o sistema religioso da época, tanto os legalistas como os ritualistas. E, para espanto dos moralistas, um samaritano, estrangeiro, herege e impuro, é apresentado como modelo de salvação.
Para quem, como o Papa Francisco, se coloca na tradição de Francisco de Assis, a parábola é ainda mais instigante. Ela remete à conversão do jovem Bernardone. No seu Testamento, ao descrever a conversão provocada pelo encontro com os leprosos, São Francisco utiliza a expressão do Livro dos Provérbios e da parábola do samaritano misericordioso: “...como estava em pecados, parecia-me por demais amargo ver os leprosos. E o próprio Senhor me levou para o meio deles, e fiz misericórdia com eles”.
Fazer misericórdia! Este é o imperativo para a construção de uma nova humanidade e de uma nova sociedade. Não basta “ter” misericórdia. É preciso “fazer” misericórdia. Ter é para si. Fazer, é para o outro, para aquele que foi assaltado, espancado e abandonado na beira do caminho. Para Francisco de Assis, o apelo por misericórdia vem dos leprosos jogados para fora das cidades medievais. Vai ao encontro, desce do cavalo, beija, cuida, recoloca em humanidade. Jon Sobrino, nosso teólogo salvadorenho, no subtítulo de seu livro, chama os cristãos a “descer da cruz os povos crucificados”. Com efeito, a misericórdia não é uma atitude individual. Ela é comunitária, coletiva, política. É o princípio que rege a salvação de cada pessoa, sim, mas também da Igreja e toda a sociedade.
Fora da misericórdia, não há salvação. É o apelo da fé que precisa chegar à razão e ser transformado em ação.
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