Fratelli Tutti: as religiões e a paz
Nos livros de História, tanto nos utilizados no Ensino Médio como nos Ensino Superior, frequentemente encontramos referências a “guerras religiosas”. No Ocidente, os exemplos clássicos são as Cruzadas e as guerras que se sucederam às reformas religiosas na Europa nos sécs. XVI e XVII. Ainda no séc. XX, há conflitos que são apresentados como religiosos. É o caso da Irlanda do Norte, da guerra civil Iugoslava, do Kosovo, da infindável batalha entre o Estado de Israel e os palestinos, do Afeganistão, Paquistão, Chechênia, Nagorno-Karabakh...
Se olhamos a fundo e saímos da platitude superficial da informação enviesada e interesseira, vemos que a religião, em todos estes casos e em tantos outros, é o fator menos importante. Mais: em todos eles, a religião é utilizada como um subterfúgio para acobertar outros interesses e manipular os que sofrem as consequências da violência da qual são atores e vítimas. Nenhum povo entra em conflito com outro por causa da fé. São os interesses econômicos e políticos que, manipulando o sentimento religioso, convencem as pessoas de que Deus quer a guerra. E, como a religião constitui o mais profundo das identidades culturais e nacionais, muitos são enganados por falsos líderes que manipulam a fé e a religião segundo interessesescusos.
Na verdade – e é nisso que o Papa Francisco insiste no último capítulo da Fratelli Tutti – os conflitos surgem quando se coloca outra coisa no lugar de Deus. A guerra brota quando o Absoluto de Deus – seja qual a forma que se lhe dê em cada religião – é substituído por um outro absoluto criado pelo ser humano. Pode ser o mercado, o capital, a propriedade privada, o estado, a nação, a classe, a raça, uma ideologia qualquer. Quando algo criado pelo ser humano é alçado à condição divina, temos aí uma idolatria. E todo ídolo exige o sacrifício de humanos para continuar a exercer sua fascinação necrófila e apavorante sobre seus adoradores. E a guerra é a forma mais cruel de sacrificar pessoas para defender interesses que em nada lhe dizem respeito.
As religiões cumprem sua função quando se empenham em afirmar, na sua prática cultual, a transcendência de Deus e a salvaguardar, no seu compromisso ético e político, a face de Deus expressa nos rostos de cada pessoa humana, creia ela em Deus ou não. No judaísmo e no cristianismo, isso está presente de forma sintética quando afirmamos que o maior mandamento é amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. As outras religiões, com outras palavras e outras expressões, afirmam essa mesma verdade que brota do fundo de todo o coração humano.
Dialogar a partir deste princípio fundamental torna a convivência religiosa possível e abre caminhos para a prática solidária dos homens e mulheres de fé com toda a humanidade e as outras criaturas.
Na fé no Deus vivo e verdadeiro, criador e cuidador de todos os seres humanos e todas as criaturas, está o fundamento para a fraternidade universal e a amizade social.
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