Entranhamento
“Arte e vida são planos não superpostos, mas interpenetrados, com o ar entranhado nas massas de água, indispensável ao peixe”. Com esta, entre outras imagens que mereceriam tomar a forma de um poema, Guimarães Rosa explica o lugar do poeta no mundo.
É impossível não ver a linguagem arcaica que o autor recria em Grande Sertão: Veredas como a sua capacidade de mergulhar nas águas da vida para recuperar o seu valor essencial e perene, indispensável para vislumbrar o futuro. A linguagem de Rosa é tão importante quanto a história que conta por meio das palavras que usa e inventa: é matéria viva, que retira da boca dos homens simples do sertão e transforma em monumento da existência. Rosa salva a língua e a vida da extinção, pois percebe que resgatar a linguagem é conservar culturas, saberes, experiências.
O momento que vivemos é muito grave e os testemunhos que lemos, as notícias, as declarações, o desprezo, a resignação, a persistência, esse maremoto de sensações e atos que estão sendo registrados por meio de palavras, serão uma fonte preciosa de análise no futuro. Falamos muito, mas talvez não seja o bastante: nunca foi tão necessário cantar as nossas dores para não perecer. Quando já não estivermos no mundo, as nossas vozes coletivas restarão para testemunhar a nossa capacidade ou a nossa impotência para dominar não apenas o vírus, mas as políticas que determinaram a nossa vitória ou o nosso fim.
É urgente que vozes poéticas se ergam, como um quadro de Caravaggio, com São Tomé colocando o dedo na ferida. É preciso ler poesia, para redescobrir a potência das palavras sobre a nossa efemeridade. Esse entranhamento não tem nada a ver com a postura pedante dos que exibem diplomas, mas são incapazes de interrelacionar os saberes à vida real.
Magma, único livro de poemas escrito por Guimarães Rosa, permaneceu inédito por sessenta anos e só teve uma primeira publicação após trinta anos da morte do autor. Escrito em 1936, venceu um prêmio literário promovido pela Academia Brasileira de Letras. Até aqui o contexto. Agora, a citação de um trecho do poema de abertura, Águas da Serra, que parece anunciar o ressurgimento do mundo:
“Águas que correm
claras,
do escuro dos morros,
cantando nas pedras a canção do mais-adiante,
vivendo no lodo a verdade do sempre-descendo…
Águas soltas entre os dedos da montanha,
noite e dia,
na fluência eterna do ímpeto da vida…”
Como observador de todos os tempos, o poeta consegue apresentar a força vital que emerge primeiro como lama e se transforma em água cristalina ao chegar no vale, depois do filtro das pedras. O processo é descrito como o parto do tempo futuro, que aparece mais adiante com as imagens de “novos amores em busca de caminhos” e das “águas e as lágrimas sempre correndo”. Lágrimas: que neste momento evocam luto, perdas e dor. Que evocarão alívio quando todo este sofrimento que estamos atravessando passar. Que talvez se transformem em pequenas alegrias reencontradas na memória de outros tempos felizes ou que poderão ser inventadas na medida da nossa determinação a renascer dessa época sombria.
É interessante notar, ao longo do livro, que Guimarães Rosa retorna várias vezes ao choro e às lágrimas. Diante da morte, a lágrima afirma a dignidade da vida: a que foi e a que resta. Só quem chora ainda pode ser humano. Sem nunca mencionar a palavra, no poema Roxo, o autor escreve: “Passou pelas olheiras fundas, / pousou no ramalhete de saudades, tocou na fita das coroas, longas / como equimoses… / E agora, vê: vai passeando / de leve, pelos lábios, pelo rosto, / pelo corpo, / pelos dedos, duros, do teu esposo morto…”. Rosa também escreve que “a água dos olhos / nunca tem sono…” no poema Sono das Águas. O livro se encerra com o poema Consciência Cósmica, no qual podemos ler: “Já não preciso de rir. / Os dedos longos do medo / largaram minha fronte. / E as vagas do sofrimento me arrastaram / para o centro do redemoinho da grande força, / que agora flui, feroz, dentro e fora de mim…”.
A sensibilidade às dores se transforma, ao longo do livro, em hino que celebra a nossa humanidade. Se não bastasse a intuição da leitura, uma estrofe do poema Regresso deixa claro esse entranhamento da palavra na vida: “Oh!... que bom, uma palavra basta / para refazer o meu idioma: / - ‘Sofrimento… Sofrimento…’ / e não a esquecerei!...”
Somente o não dito, presente nas insistentes reticências usadas pelo autor, possuem força maior que o sofrimento expresso. Quando se detém a descrever o espaço, como no poema Revolta, a lírica assume o tom da perda e da despedida. Sentindo-se só, depois de todos terem partido, deixando apenas silêncio, o poema sintetiza a essência da relação entre a vida e a palavra: “Não, não quero ser desterrado, / que a minha pátria é a memória…”
A palavra é essencial para a vida: por meio dela restituimos ao tempo as dores, as lágrimas e o sentido da memória. Sem as palavras que registram no tempo o nosso sofrimento perdemos o peso do encantamento que é ver as águas voltarem a brotar depois das piores estações, que é entender a lama transformar-se em água cristalina, que é compreender como o futuro é forjado em um parto doloroso e que a nossa resignação é sempre uma inaceitável vitória da morte.
É muito triste o que estamos vivendo, mas precisamos seguir firmes para honrar a vida dos que se foram, dos que caíram na batalha injusta que despreza os pobres, que esquece a sacralidade da vida, que espezinha o sentido de humanidade. O nosso entranhamento nas palavras é uma imposição da memória, é um dever que devemos cumprir por respeito aos mortos, aos milhares de mortos dessa época de desigualdades assombrosas, e por amor aos que hoje vislumbram a vida e não merecem perder o futuro que ainda podemos ter.
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