É preciso ir às ruas novamente
É preciso ir às ruas novamente
Normalmente o termo “rua” designa um espaço físico exterior que não pertence a algo, como do tipo: “Está muito calor nesta casa: vou até à rua apanhar um pouco de ar”. Por vezes o termo “rua” é usado como sinônimo de opinião pública: “Um político deve sempre dar ouvidos àquilo que a rua diz”; “Os comentários de rua dizem que a equipe fez um bom jogo e que não merecia perder”. A rua é espaço importante para a evangelização, para o exercício do ministério sacerdotal e da vida religiosa consagrada.
O termo “rua” provém do latim ruga que significa ruga, sulco, caminho, para designar o “caminho” de um rosto mais velho, como em “ruga” ou dobra na pele em forma de sulco, ao perder o “g” e virou “rua”, como caminho de passagem. Essa explicação está associada na “Roma Antiga, as ruas tinham a função primária de servir como canais de escoamento das águas das chuvas e das águas-servidas”. Ao mesmo tempo as ruas serviam como via de circulação, do sentido de via do latim “via” caminho, estrada, preparada para a passagem de pessoas e veículos. Nas cidades as ruas estendem-se até cruzar com outras ruas que interrompa a sua continuação e ou que leva ao acesso a outros espaços físicos.
O evangelista Lucas narra que no domingo da Páscoa dois discípulos viajavam para um povoado chamado Emaús, próximo de Jerusalém, em que Cristo Ressuscitado aproximou-se e pôr-se a caminhar com eles; e sem que o reconhecessem lhes pergunta: “que palavras são essas que trocais enquanto ides caminhando”? Uma longa conversa se inicia e a caminhada continua até o povoado de Emaús e no final da viagem Jesus é convidado a pernoitar com eles, seus discípulos. Convidado a mesa para a refeição, Jesus tomou o pão o abençoou-o e o distribuiu-o, nisso os olhos dos discípulos se abriram e reconheceram seu Mestre. Na mesma hora, os discípulos levantaram-se, retornaram para Jerusalém e anunciaram aos outros o acontecimento do caminho que reconheceram Jesus no partir o pão (Lucas 24,13-35).
A caminhada faz bem à vida humana e para o crescimento da fé em Deus. O povo de Deus caminhou deserto adentro por 40 anos até chegar a Terra Prometida (Deuteronômio 8,2). O profeta Elias percorreu em 40 dias e noites o caminho para chegar à montanha de Deus, o Horeb (1Reis 19,9). A Virgem Maria percorreu a longa caminhada para a região montanhosa da cidade de Judá para servir sua prima Isabel (Lucas 1,39). Jesus com seus discípulos caminha da Galileia a Jerusalém para vencer a morte de Cruz e cumprir a missão redentora da humanidade (Lucas 9,51).
Houve um tempo em que desde infância as pessoas cultivavam o hábito de caminhar até a Igreja, ao trabalho, à escola, ao vilarejo, à cidade. O andar a pé favorece contatos com as pessoas e a percepção da realidade humana. No caminho encontram-se pessoas andando, nas portas das casas, nas paradas de ônibus, nas esquinas, nas praças. Para aqueles que caminham com fé, esses encontros espontâneos acabam sendo uma ação missionária e evangelizadora.
No início do ministério sacerdotal, no bairro Harmonia, na cidade de Canoas, inúmeras vezes e por anos com uma sacola de pano nos ombros percorria o caminho de um bairro a outro para as reuniões da pastoral da Criança, das Mulheres, para visitar as crianças da catequese e da crisma, para encontro de comunidades, para as celebrações litúrgicas e outras atividades pastorais. Nessa caminhada não havia cansaço, sempre a disposição de servir aos outros. A vida sacerdotal e capuchinha é uma caminhada para o meio do povo. É um estar itinerante. Pelo caminho dos bairros e vilas compreendia a missão de Cristo junto aos seus prediletos, os pobres. No andar a pé a rua torna-se lugar do encontro, da partilha da vida, das esperanças, da percepção da realidade e do comprometimento com as pessoas por amor ao Evangelho.
O caminho da fé tem olhos fitos na realidade, nos sofrimentos humanos e no discernimento da presença de Deus. No caminho da fé nascem as perguntas pelo sentido da vida das pessoas e a compaixão pelo pobre (Marcos 8,1-10). Quando vejo pessoas caminhando me pergunto: o que fazem essas pessoas caminhando se vão para seus trabalhos e passeios de carro? E quando vejo tantas pessoas passeando com seus cães, pergunto: quem leva quem a caminhar? Independente das motivações da caminhada é certo que no caminho o missionário de Cristo pouco ou nada passa despercebido e no meio do povo faz suas opções vitais para a fé e para Boa Notícia do Evangelho.
Na percepção que a vida sacerdotal e religiosa na atualidade não encanta os jovens, perguntamos pela causa disso e a resposta talvez esteja associada à perda do contato com a rua, com as pessoas, operários, juventude e com sua realidade. Outras respostas podem estar relacionadas às pesadas estruturas materiais, veículo, computador, agenda e vida enclausurada nos conventos e nas casas paroquiais. Ou como da perda do elã pastoral e da incapacidade de animar a comunidade de fé por um projeto eclesial evangélico. Seja qual forem as causas e as respostas do desencanto, a realidade da vida sacerdotal e religiosa apontam a necessidade de uma reinvenção em curto prazo.
Em contrapartida, o Evangelho pulsa em sacerdotes e religiosos que refazem o caminho que percorreu Jesus de cidades, vilas, casas, sinagogas, montanhas até o monte Calvário (Lucas 9,51). Em sua caminhada da Galileia à capital Jerusalém, Cristo de pés empoeirados, teve por companhia a multidão de famintos, doentes, necessitados, os excluídos (Lucas 9,51). Jesus pela inserção social realizou sua caminhada redentora e libertadora. O novo na vida sacerdotal e religiosa vem do caminhar juntos daqueles que ocupam as ruas, prova viva é o padre Júlio Lancellotti, o maior profeta de nosso tempo. Os caminhos de renovação do ministério sacerdotal e da vida religiosa parecem estar expostos, vem das ruas, do contato com os sofridos, de sentir o cheiro dos operários, dos idosos, da juventude desassistida, dos doentes, do estar entre o Povo de Deus.
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