Couraça
Michelangelo como poeta é tão genial quanto o escultor e o pintor consagrado. Mas ao contrário das artes plásticas, que praticou por profissão e atendendo a encomendas, a poesia para ele sempre foi uma arte diletante. Grande parte dos seus poemas foi composta sem o objetivo de compor uma obra. Em muitos casos, os textos foram escritos no verso de esboços de projetos que prenderiam forma plástica, como se constituíssem um comentário: artes dialogantes no interior da imaginação de um artista único na nossa história.
Há um pequeno poema sublime na sua obra, escrito no verso de um outro poema, que o autor imaginava incluir em uma antologia. Além disso, se trata de um texto que evoca um verso de Virgílio muito conhecido: “Omnia vincit amor et nos cedamus amori” (O amor vence tudo, entreguemo-nos ao amor). O poema, que os críticos acreditam ser o princípio de um poema que não foi completado, diz o seguinte:
“Toda ira, toda miséria e toda força
quem de amor se arma vence toda fortuna.”
O poema com o qual estes versos compartilham a mesma folha diz o seguinte:
“Tudo o que vejo me aconselha
E suplica e força que eu vos ame e siga
Pois o que não é vós não é o meu bem.
Amor, que despreza qualquer outra maravilha,
Para a minha saúde quer que eu procure e brame por
vós, Sol, só, e assim a alma mantém
toda esperança alta e todo valor priva,
e quer que eu arda e viva
não somente de vós, mas de quem a vós se parece
dos olhos e dos cílios alguma parte;
e quem de vós se parte,
olhos, minha vida, não tem luz por-
que o céu não está onde não estais.”
Entreguemo-nos por uma vez ao menos: por temor, pela nossa saúde, pela nossa esperança, para que vivamos e possamos lembrar. Deixemos que o amor vença, porque é o único que pode ganhar a batalha. O amor é o único a possuir uma couraça imbatível. Deixemo-nos levar pela sua força que nos projeta para o futuro. Que o amor possa estar em nós e entre nós nessa hora trágica, para que um dia não seja apenas o testemunho escrito de uma guerra perdida. Que o amor vença e prevaleça sobre a nossa atual desventura.
Se na semana passada falei de realidade e lembrei que não devemos confundir com a ficção, esta semana falo de literatura, para lembrar que sem a imaginação dos poetas o peso da realidade nos distrai daquilo que é essencial na vida.
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