Cardeal poeta e profeta
Jorge Mario Bergoglio, papa Francisco, não cessa de surpreender os fiéis de sua Igreja, mas também o mundo, com suas iniciativas. Entre essas surpresas encontram-se as nomeações para postos da hierarquia da Igreja e posições-chave no tecido eclesial. Os cardeais, figuras imediatamente próximas do papa, que garantem sua eleição no conclave, não escapam a essas surpreendentes dinâmicas.
É assim que temos visto nomeações para o cardinalato de padres que ainda não haviam sido ordenados bispos, pulando etapas na escalada hierárquica. É o caso do jesuíta tcheco Michael Czerny, extremamente atuante em El Salvador e ultimamente braço direito do papa no trabalho com os migrantes. Ou bispos auxiliares, não titulares de dioceses, recebendo o chapéu cardinalício. A exemplo do cardeal Rosa Chaves, de El Salvador, que de auxiliar da diocese de San Salvador passou diretamente ao cardinalato, sem haver sido o titular. E recentemente tivemos a encantadora surpresa de ver um poeta nessa lista inesperada e improvável daqueles que são chamados príncipes da Igreja: dom José Tolentino.
Poeta dos mais inspirados, é filho de pescador nascido na bela e aprazível Ilha da Madeira. Doutor em Teologia Bíblica, sempre se moveu no universo da cultura. Seu conhecimento das Escrituras Sagradas vai de par com seu amor pelas Escrituras produzidas pelo gênio e a imaginação humanos. No estudo da Bíblia, aborda temas e textos do cânon cristão dialogando sempre com as questões sociais e culturais do presente. A relação entre Cristianismo e Cultura é um ponto chave do seu percurso.
Dom Tolentino é autor de abundante obra literária, na qual incluem-se inúmeros ensaios, além de uma robusta e inspirada obra poética. Ao mesmo tempo em que se move nos círculos literários e culturais portugueses, europeus, norte e latino-americanos, assina crônica semanal no jornal Expresso e recebe prêmios dentro e fora de Portugal pelos livros que publica.
Distingue-se pela beleza do texto e preocupação não só estética, mas também e não menos profética daquilo que escreve. Em recente entrevista ao Diário de Notícias, importante periódico de Portugal, ressaltou a importância que dá à dimensão profética do Cristianismo, tão constitutiva desde suas origens e muitas vezes tão pouco compreendida até mesmo em círculos internos da Igreja. Afirmou que o catolicismo, sem uma inscrição à esquerda, perde uma potencialidade profética que lhe é absolutamente indispensável.
O novo cardeal deplora que se sinta hoje uma ausência de atores que possam trazer para o debate eclesial questões que normalmente estão associadas à esquerda. Reconhece, no entanto, que o papa Francisco tem sido esse ator, trazendo à frente do espaço público as questões da justiça, da equidade e da paz. Por isso, avalia dom Tolentino, há tanta oposição e tanta discussão com o papa.
O cardeal poeta constata que surpreendentemente, enquanto a sociedade secular ouve com atenção o que diz Francisco e cita permanentemente suas palavras no espaço público, há um importante setor à direita que se sente profundamente incomodado com o bispo de Roma, sentindo “uma necessidade de estar sempre a traduzir o seu magistério, como se ele não falasse claro e fosse necessário mitigar o impacto do seu posicionamento e do seu magistério.”
Não poderíamos estar mais de acordo com o novo cardeal. Cada vez que Francisco fala e age, sempre que surpreende o mundo com seu estilo direto e evangélico, não falta quem venha rapidamente tentar fazer uma interpretação tentando dizer que ele não disse o que pareceu dizer.
Os poetas que vivem perto da beleza e da verdade sabem que, de fato, o papa queria, sim, dizer o que disse e o que tem dito. E dom Tolentino sintoniza com ele quanto ao fundo e à forma. O pastor e o poeta, um com seu magistério, outro com sua arte e poética têm em comum uma teologia feita de sede de sentido para a vida, sede de justiça, liberdade e vida plena, prenhes de fé na humanidade.
Assim como Francisco visibiliza a Igreja enquanto sacramento de Cristo, que por sua vez é sacramento do Pai, o cardeal Tolentino se autocompreende enquanto fruto da alteridade salvadora e epifânica dos irmãos e irmãs em humanidade. Afirma ser uma obra dos outros viver com eles uma relação permanente, em uma comunidade que marca sua vida. “Realizo-me nessa espécie de tráfego quotidiano que me aproxima e reenvia quotidianamente para os outros.” Assim se define José Tolentino Mendonça. E quem o conhece, reforça; “É um homem que vive para os outros.”
Ao saber de sua nomeação como cardeal, juntamente com a amizade que por ele experimentamos, não podemos menos do que maravilhar-nos com mais essa deliciosa surpresa que nos oferece Francisco. Foram tantas já, desde o início do seu pontificado. Mas agora, esse presente de um cardeal poeta... Que maravilha Santo Padre! Que a liberdade do Espírito continue sendo a marca registrada de seu pontificado.
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