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Bem-estar universal é uma utopia?

Miguel Debiasi

 

O médico e pesquisador austríaco Sigmund Freud (1856-1939), que criou a psicanálise, método utilizado para o tratamento de doenças mentais, definiu a saúde como “capacidade para o trabalho e para o gozo”. Consideremos a definição de Freud um convite para uma reflexão a descobrir a vitalidade dos humanos na saúde e na doença.

As teorias de Freud influenciaram profundamente as concepções da Medicina, Educação e Sociologia sobre os humanos do século XX. As percepções de mundo externo, consciência e da inconsciência dos estados afetivos, dos processos psíquicos, das relações biológicas e fisiológicas de Freud são instigantes. Ao ponto que hoje estudar sociologia, antropologia, filosofia, medicina e educação exige certo domínio de conhecimento das teorias de Freud.

Sua definição de saúde como “capacidade para o trabalho e para o gozo”, leva-nos a duas conclusões: se um ser humano não está limitado em sua capacidade, vive num estado de verdadeira saúde. Se o ser humano está limitado na sua capacidade para o trabalho e para o gozo, vive em estado de doente. Para o teólogo luterano alemão Jürgen Moltmann (1926) a definição de saúde de Freud corresponde ao pensamento da sociedade meritocrática industrial que orienta seus valores centrais pela produção e consumo. A definição de saúde de Freud desqualifica muitas pessoas, estigmatiza-as e, na velhice, converte-as em “pessoas inúteis” e “supérfluas”, conclui Moltmann.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) formulou uma definição de saúde ampliada: “saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não consiste somente na ausência de uma doença ou enfermidade”. Esta definição também não parece ser a máxima, absoluta. Para Moltmann se considerar saudável somente aquele que se encontra em estado de completo e universal bem-estar, então todas as pessoas serão mais ou menos doentes, pois elas não existem no paraíso. É bastante óbvio que nenhum Estado ou Nação poderá garantir bem-estar físico, mental e social a todos os seus cidadãos. Uma vida sem sofrimento está mais para utopia que para a condição da natureza humana.

Mas a definição de saúde da OMS é fundamental para a população mundial, dizendo que a integridade física, mental e social são direitos humanos. A saúde não é somente conquista da pessoa pelos cuidados pessoais, mas também de responsabilidade do Estado, de garantir um sistema de atendimento e cuidado sanitário da população. O cuidado pessoal por uma vida saudável e a disposição de recursos através de uma estrutura para saúde pública são essenciais para um bem-estar físico, mental e social, aceitando a saúde e a doença como um estado da vida humana.

Se compreendermos a doença como distúrbio funcional de certos órgãos do corpo, então, a saúde é um estado sem distúrbios. Obviamente que as doenças graves e prolongadas afetam todo o corpo e estado mental e social. Sob outra perspectiva, a saúde significa não ausência de distúrbios, mas a força de viver com eles. Nessa perspectiva a doença não é apenas um estado de distúrbio, mas a força para a existência humana. A luz teológica o estado de saúde e de doença é espaço para presença de Deus, dando às pessoas uma força para aceitar a vida e para a entrega da vida, a morte como um sim para Deus (Salmo 103,2-3).

As doenças graves levam as pessoas para uma crise existencial, para o questionamento do próprio sentido da vida. Muitos doentes não entendem mais sua vida porque o estar-doente priva-os das condições e dos princípios anteriores de sua vida de saúde. Quando a pessoa percebe que não pode mais confiar em sua saúde, pode levar a duas atitudes, do desânimo ou a adquirir força para enfrentamento do estado de doença. A força para enfrentamento vem da percepção que a vida humana não é meio e nem fim. Mas porque é vivida, aceita, amada e afirmada por Deus, pela qual se deve viver e morrer (Provérbio 13,12).

No Brasil ressurge um conjunto de doenças infecciosas e as previsões de que a medicina erradicaria essas epidemias parecem estar equivocadas. Doenças como a malária, tuberculose e hepatite ainda são as maiores causadoras de mortes. A cólera, depois de cerca de um século, reaparece. A cólera tem ocorrido em áreas com precárias condições de vida e de infraestrutura urbana, como falta de saneamento básico. A febre amarela urbana tem se espalhado e seu principal vetor, o mosquito Aedes Aegypti, hoje é encontrado até no México, a uma altitude de 2.000 mil metros. O mosquito que até pouco tempo era encontrado em locais com altitude até de 1.000 mil metros. O Brasil é um país de altitudes modestas, uma média de 40% de seu território se encontra abaixo de 200 metros, cerca de 45% fica entre 200 e 600 metros e 12% entre 600 e 900 metros.

Nas últimas décadas houve um aparecimento de novas doenças, os estudos atribuem as causas às mutações dos vírus e da evolução de outros micróbios e dos patógenos, dos organismos que causam doenças. O surgimento de novos agentes de doenças é resultado das mudanças sociais e ambientais fazendo com que os organismos causadores de doenças adquirissem acesso a novas populações hospedeiras. Os estudos apontam que o principal fator de disseminação das doenças ocorre pela vulnerabilidade da população, de grupos, de comunidades vivendo na pobreza, miséria, sem infraestrutura e saneamento básico.

Segundo dados da OMS, a pandemia da Covid-19 em meados de 2022 já supera 15 milhões de mortes em todo mundo e que a disseminação do vírus relaciona-se a um conjunto complexo de fatores como os sociais, os econômicos, políticos e sanitários. A saúde de uma pessoa e de uma população é determinada por esses fatores como da qualidade de vida, habitação, alimentação, acessos aos recursos econômicos, às estruturas públicas sanitárias e outros. Certamente, para alcançar um ideal de bem-estar universal exige distribuição de renda, recursos e acesso às estruturas de saúde, educação, cultura e outras.

No Brasil será preciso uma nova política com prioridade em saúde pública, habitação, saneamento básico, educação qualificada, melhoria salarial. No Rio Grande do Sul 14% das famílias passam fome, aponta a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). Os estudos sobre o Brasil e o Estado do Rio Grande do Sul mostram que um bem-estar universal ainda é utopia, ainda uma realidade distante. Eis um desafio para os próximos governantes.  

Sobre o autor

Miguel Debiasi

Frade da Província dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul. Mestre em Filosofia (Universidade do Vale dos Sinos – São Leopoldo/RS). Mestre em Teologia (Pontifícia Universidade Católica do RS - PUC/RS). Doutor em Teologia (Faculdades EST – São Leopoldo/RS).

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