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Anistia não rima com impunidade

Gislaine Marins

Em 1973, a célebre canção “Tiro ao Álvaro”, de Adoniran Barbosa e Osvaldo Moles, foi censurada por “falta de gosto”. Posteriormente, os censores reviram o parecer inicial e liberaram a sua difusão, desde que as palavras “tauba”, “artomove” e “revorve” fossem escritas corretamente, segundo as regras ortográficas. Os censores não viram que “flexada” e “istriquinina” desviavam-se igualmente da norma culta e ignoraram, em geral, que os chamados “erros” disseminados no texto davam dignidade poética ao registro popular usado pela nossa gente.

 

Oswald de Andrade, no alvorecer do modernismo, já tinha explicitado a coexistência pacífica dos diferentes registros no poema “Pronominais”:

 

“Dê-me um cigarro

Diz a gramática

Do professor e do aluno

E do mulato sabido

Mas o bom negro e o bom branco

Da Nação Brasileira

Dizem todos os dias

Deixa disso camarada

Me dá um cigarro.”

 

As pessoas ignorantes se parecem muito com as pessoas estúpidas, que Umberto Eco, na célebre crônica “Como justificar uma biblioteca particular”, definia assim: alguém que, tendo uma ideia óbvia, é incapaz de pensar que outros possam ter pensado a mesma coisa anteriormente. Da mesma forma, os ignorantes são incapazes de supor que haja desvios da norma culta que eles desconhecem.

 

Graças à ignorância de muitos censores, algumas passagens da nossa triste história durante a ditadura militar tiveram tons pitorescos e viraram até piada, mas enquanto a gente ri, por vezes esquece aquilo que é trágico. A ditadura torturou, expulsou e matou pessoas. Instituiu a barbárie da violência e das punições sem julgamento. Destruiu as instituições da República e o estado de direito.

 

A anistia devia restaurar a normalidade após os abusos, pois anistia significa antes de tudo a extinção daquilo que foi considerado crime. Com a anistia o crime não existe mais. Com o indulto, extingue-se a pena, mas não o crime. Com a impunidade abstém-se de considerar o crime e consequentemente a pena. A censura está para a anistia, como o impróprio sigilo está para a impunidade.

 

“Chega de saudade, a realidade é que sem ela não há paz”. Recordar esses versos de Vinícius de Moraes e Tom Jobim me faz pensar que a anistia é o fim da saudade. Se anistia é cancelar o passado, a saudade é a dor da memória, que martela e faz sentir o coração bater. Mas a anistia deve existir para corrigir injustiças, não para corroborar a impunidade.

 

Por isso, considero equivocada a discussão sobre a anistia hoje. A anistia não serve a quem detém ou deteve o poder, mas a quem foi criminalizado, censurado, torturado, expulso, assassinado. As palavras e os conceitos devem retomar o seu lugar apropriado. A memória deve ter o seu espaço adequado. A impunidade deve ser combatida onde não cabe falar de anistia ou indulto. Regastar o conceito de justo processo é necessário, pois, as instituições não são espezinhadas apenas quando são impotentes diante da violação dos direitos fundamentais. Autorizarem que prevaleça a ideia de impunidade é uma forma de enfraquecer as mesmas instituições. Uma civilização para ser tal precisa de equilíbrio e a justiça é um pilar fundamental para isso.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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