Agruras do tradutor em tempos de pandemia
O tradutor, em teoria, faria parte da categoria dos sortudos. Afinal de contas, é um dos profissionais que pode trabalhar em qualquer lugar, desde que tenha um computador e uma conexão à internet. Na teoria, o trautor não necessita de contato humano: basta enviar as palavras traduzidas ao pé da letra, sem tirar nem pôr. Lamento, mas na teoria, e principalmente na prática, tudo isso é inverdade. Na vida real, o tradutor é visto como o mensageiro das más notícias. Na prática, é considerado o deus das pequenas e grandes tragédias. Na teoria, o tradutor poderia limitar-se a clicar e enviar: caso encerrado. Mas o tradutor é mais do que isso: é o elo de conjunção, é o elemento que permite o diálogo entre diferenças de sensibilidade, de culturas e de concepções.
Digamos que, em meio ao drama que vivemos, o tradutor é um sobrevivente. Como podemos prescindir de uma figura que se obstina em dizer o que não queremos ouvir, o que não estamos dispostos a compreender, mas que se impõe, por dever de ofício, à presença do outro? O tradutor não transpõe palavras: compartilha experiências. A disponibilidade à tradução representa uma abertura à voz alheia, à diferença.
Em tempos de pandemia é preciso dizer (e os tradutores sabem muito bem disso): a nossa percepção da pandemia não é universal. O peso, a gravidade, a atenção reservada à pandemia muda de país para país, de cultura para cultura. O tradutor é chamado a traduzir o que outras culturas comunicam, mas também a explicar o que as culturas sentem, quando as sensibilidades são diferentes.
Fiquei muito emocionada ao ler a Carta Apostólica do Papa Francisco dedicada aos 1600 anos da morte de São Jerônimo, padroeiro dos tradutores e dos secretários. Sem tirar nem pôr, o Papa lembra que Jerônimo foi rigoroso na tradução, assim como teve um caráter áspero. Com palavras atuais poderíamos dizer: tinha um gênio que só vendo! O ponto que me emociona como tradutora, no entanto, é quando o Papa descreve a tradução como uma forma de acolhida linguística, não inferior a outras formas de acolhida.
De fato, a tradução possui este mérito e esta responsabilidade: transmitir, a quem não conhece uma língua e a cultura que essa língua veicula, os conceitos, os valores e as percepções que não pertencem ao nosso universo cultural. Traduzir significa sensibilizar as pessoas à diferença. As nossas idiossincrasias são tão evidentes que na Itália uma campanha afirma: as diferenças são a essência humana. Valorizar as diferenças é defender a nossa liberdade. Lembrei de uma campanha do governo brasileiro em um tempo que parece um outro mundo. Dizia: “o melhor do Brasil é o brasileiro”. Em algum momento da nossa história chegamos a compreender que a nossa maravilhosa diversidade cultural é a nossa riqueza. Abolir as diferenças, aniquilar povos, abrasileirar povos indígenas à força significa empobrecer a nossa cultura plural. São temas que os tradutores compreendem bem: vivemos de diferenças e de diálogo. Sobrevivemos graças à maravilhosa diversidade humana e à capacidade de colocar em contato as nossas diferenças com espírito de respeito e interesse.
O tradutor, este ser aparentemente sortudo em meio à pandemia, padece como um profeta no deserto: como explicar às pessoas as nuances do conceito de dignidade inalienável da vida humana? Como transcrever por meio de palavras o horror de cento e cinquenta mil mortes ou mais do que duzentas mil em alguns lugares e o rigor europeu que não admite a superação de cinco mil contágios por dia? Como traduzir a resignação e a indignação de certas latitudes e a preocupação e o temor de outras? A sensibilidade não se traduz, compreende-se, acolhe-se.
A tradução serve para informar, comunicar, difundir dados, mas principalmente é importante para enriquecer a nossa sensibilidade. A pandemia nos mostrou exatamente isso: alguns governantes disseram que as pessoas deveriam acostumar-se a enterrar os seus familiares, outros disseram “e daí? Não sou coveiro”, outros incentivaram os seus cidadãos a terem um papel ativo na superação da pandemia. O Presidente italiano respondeu a um outro governante europeu que os italianos não são incentivados a usar máscaras porque são menos livres, mas porque usar máscara é um gesto de responsabilidade. Haja tradutores para transmitir o conceito. Seis meses de pandemia já foram ultrapassados e ainda não conseguimos encontrar o denominador comum.
Em síntese, no meio de toda essa sorte, o tradutor é um sujeito frustrado, que ouve ao seu redor vozes e sensibilidades diferentes e constata que a pandemia é apresentada como um fenômeno global, irrefreável, inexorável. No entanto, a pandemia é sobretudo um fenômeno incompreendido. A pandemia não é igual para quem considera que a vida possui um valor inalienável e para quem aceita a morte como uma fatalidade. A pandemia não possui a mesma gravidade para quem acredita que adotar medidas de prevenção é fundamental para combater o vírus e para quem pensa que retardar a difusão de massa do vírus é apenas um adiamento da tragédia inevitável. O tradutor muitas vezes não consegue superar a barreira entre os que seguem os princípios da ciência e os negacionistas. É impossível explicar o absurdo: essa não é a tarefa de tradutores, que se limitam a transmitir a existência de tais aberrações.
São muitas as agruras do tradutor em tempos de pandemia. Apesar disso, não podemos calar, não podemos interromper o fluxo da comunicação e do diálogo entre as culturas. O nosso trabalho, nesses tempos difíceis, é comparável à gota de chuva no deserto. Mas sabemos: bastam poucas gotas de chuva no deserto para que surja uma primavera exuberante e surpreendente no meio da areia. Seguimos em frente com este desejo: que poucas palavras, na nossa humilde lavra cotidiana, possam fazer florescer a sensibilidade e surpreender o nosso pessimismo. Enquanto isso, os números falam, destroem, amedrontam. Nós ainda acreditamos que uma palavra poderá salvar o mundo.
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