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A última pedra

Gislaine Marins

Atire a primeira pedra quem nunca foi machista. A recente gafe do Presidente argentino faz aflorar algo profundo, que o colonialismo das nossas sociedades nunca apagou: a violência contra a mulher.

Sim, na América Latina há uma profunda relação entre violência de gênero e violência territorial. Se a ocupação dos territórios foi feita com espingarda e desmatamento, o apagamento da nossa riqueza cultural foi realizado por meio do estupro como método de povoação. Os úteros das mulheres nativas foram usados para gerar braços na colônia. As estirpes dessas terras, órfãs da memória materna, levam os nomes paternos, dos colonizadores e imigrantes europeus.

Terra, pátria, casa e liberdade são nomes femininos. São nomes espezinhados historicamente porque a terra foi usurpada, a pátria foi traída, a casa nunca foi um direito e a liberdade, com raros momentos de euforia, foi uma falácia.

Percebo a homofobia como uma faceta desse machismo violento e colonial, a impor que o masculino se expresse exclusivamente pela força e o feminino necessariamente pela submissão. Qualquer expressão fora dessa dicotomia é destinada à opressão. Qualquer sinal de bom senso por parte de homens é visto como fraqueza. O ódio é a demonstração de um momento grave que adoece a nossa sociedade: exaspera e expõe a violência que se cristalizou na nossa história.

Não podemos aspirar à civilização convivendo com essa barbárie. Não podemos superar a barbárie sem fazer um sério balanço da história que nos trouxe até este abismo que contemplamos com quase incredulidade. Não podemos nem mesmo fazer as pazes com a nossa hipocrisia, como se bastasse compreender processos para ignorar a enormidade dos crimes que se acumulam sob as nossas retinas, que se depositam e se empoeiram nos nossos livros, sem uma consequência jurídica que ponha termos e limites ao que é ignóbil. Não podemos mais aceitar a ética como uma palavra para adoçar o chá das cinco. A violência existe e é palpável: mata mulheres, homossexuais, indígenas e negros. Destrói o meio ambiente, viola o conceito de propriedade, legitima a violação dos ventres, do solo e das leis.

A violência contra as mulheres, porém, é uma pedra fundamental nessa história de dominação colonialista que ainda não superamos, apesar da independência, apesar da república, apesar da Constituição de 1988. Não superamos porque não fomos capazes de recuperar o valor das nossas origens maternas, indígenas e africanas. Não introduzimos sistematicamente na nossa formação a importância das nossas histórias apagadas e aceitamos, com superficial tolerância, a permanência de expressões injuriosas como “programa de índio”, “trabalho de negro”, “coisa de veado”, “coisa de mulher”, para dar apenas um exemplo de cada categoria. O nosso conceito de democracia às avessas tolera que se ofenda uma pessoa por seus traços distintivos e critica quem observa que ser civilizado significa chamar a barbárie pelo nome que tem. Aos bárbaros não podemos mais desculpar, dizendo que é brincadeira o que se trata de ofensa, ignorância e violência.

Barbárie não é sinceridade. Barbárie não é opinião. Barbárie não é liberdade de expressão. Barbárie é perpetuar o machismo como método, é admitir a violência como instrumento, é tolerar a destruição como se fosse algo inevitável. Barbárie é ignorar que a democracia se alcança com esforço, com mudança de comportamento e com respeito por leis justas.

Nas últimas horas, vozes das mais diferentes matizes elevaram-se para criticar a frase infeliz e mal interpretada pelo Presidente da Argentina. Abaixem as pedras e façam autocrítica. Quando as mulheres brasileiras não forem mais humilhadas, violentadas, assassinadas; quando os indígenas não forem mais perseguidos e mortos por grileiros e garimpeiros; quando os negros deixarem de ser estigmatizados e de ser considerados suspeitos pela cor da pele, então, senhores, podem levantar as vozes e exigir a completa extinção do pensamento colonial no mundo. Mas antes, tenham a civilidade de olhar para dentro da nossa terra, da nossa casa, e de olharem-se no espelho: verão a face da indiferença histórica, da preguiça, da hipocrisia e da arrogância de quem acredita que pode esconder as próprias falhas apontando o dedo para as falhas alheias. Quando terminarem esta tarefa, então podem pegar a primeira e até a última pedra.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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