Pátria fraturada
As eleições terminaram e o resultado foi reconhecido inclusive internacionalmente. Mas aqui na Pátria amada esse reconhecimento se viu ameaçado desde o dia seguinte pelas manifestações insólitas de grupos expressivos de pessoas que não aceitavam a derrota e abraçavam caminhões, se reuniam sob chuva intensa diante dos quartéis, clamavam por seres extra terrestres. Também rezavam. Desde terço até cantos carismáticos. De tudo havia para sublinhar o soturno inconformismo com o resultado democrático das urnas.
Depois veio a festa da posse do candidato eleito. E metade do Brasil respirou. Não apenas pelo acontecimento em si, mas pela beleza da diversidade do país sendo exposta sem medo, acolhida, celebrada, cantada e dançada. Foi bonito, digno e confortador para os que ali viam seu voto representado e respeitado. Pensavam que, enfim, iam acabar os dias tensos e sombrios, com ameaças pairando constantemente por todos os lados e a frágil democracia ainda em perigo. Agora era realidade. Tínhamos novo governo e toda a riqueza da nossa diversidade estava representada nos muitos ministérios que prometiam erguer o Brasil do poço profundo onde fora mergulhado nos últimos anos.
Mas veio o dia 8 de janeiro. Eu almoçava com uma amiga muito querida e festejava seu aniversário. À mesa havia vitoriosos e derrotados nas urnas. Reinava, porém, respeito e harmonia. Ao voltar para casa, recebi um telefonema da aniversariante: “Estão quebrando Brasília. Liga a CBN.” Incrédula, liguei. E ouvi o que parecia impossível. Começaram a chegar as notícias alarmantes e assustadoras. O Brasil depredando a si mesmo em uma violência sem sentido nem propósito. As instituições agredidas, os poderes enxovalhados, a pátria fraturada e dolorida.
Presidente presente e enérgico, medidas tomadas, prisões etc. O evento em si foi aparentemente superado. No entanto, a fratura foi grave, exposta e ainda não calcificou. Os acontecimentos do dia 8 de janeiro mostram um Brasil dividido e que não conseguiu unificar-se em torno da democracia legitimamente constituída. O clima, que devia ser de entusiasmo e alegria pelo novo momento que o país começa a viver, mostra-se tímido como se temendo que uma nova calamidade venha a se abater sobre a recém reconstruída democracia.
A pátria está dividida e – o que é pior – aparentemente sem desejo de reconciliação e busca pela unidade. Mais: sem esperança que tal unidade – que inclui e deseja a diversidade – algum dia possa vir a acontecer.
Como agravante dessa fratura visibilizou-se diante de nossos olhos chocados a tragédia do povo yanomami. As imagens dos corpos profanados pela incúria e a ganância recordavam outras tragédias e genocídios da história da humanidade, como Auschwitz, Biafra etc. Pátria fraturada, pátria desnutrida, pátria profanada.
No entanto, ouvir os povos originários serem defendidos pela voz de uma ministra que pertence a uma de suas etnias acende uma esperança. Igualmente sentir que se o cruel desmatamento cessar ou diminuir consideravelmente a floresta poderá ser salva e seus povos poderão dela retomar posse.
Não se pode deixar de esperar. Apesar da fratura, apesar da divisão, apesar das iniquidades. Curar a pátria fraturada, soldar seus ossos quebrados, sanar suas feridas é responsabilidade de todos hoje. E isso pode dar-se pela intransigente defesa da democracia, pela insistência em promover o diálogo, pelo acolhimento das diferenças e a atenção a todas as vítimas.
Nunca talvez se fez tão necessária a cultura do encontro a que tanto convida o Papa Francisco. Em seus dez anos de pontificado, o Brasil lhe daria um bom presente se buscasse o óleo da tolerância e da abertura para ungir fraturas e feridas, a fim de devolver ao povo sua identidade e seu rosto feito de alegria e confiança em dias melhores.
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