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O eu e o outro

Miguel Debiasi

A intersubjetividade, a relação entre indivíduos, é uma verdadeira sentença para a civilização da humanidade. Toda a existência de um indivíduo é marcada pela relação com o outro. O filósofo, dramaturgo e escritor francês Jean-Paul Sartre (1905-1980), em uma peça de teatro chamada Entre quatro paredes, escreveu uma frase que se tornou célebre: “o inferno são os outros”. O outro é um problema? As relações de intersubjetividade em princípio podem ser de conflitualidade, mas também de liberdade e de mútua ajuda.

Para adentrar na frase de Sartre é preciso expor alguns elementos do autor. Sartre, ao lado do argelino Albert Camus (1913-1960), foi um dos representantes do pensamento existencialista, corrente filosófica que nasceu com Kierkegaard (1813-1855). Em sua primeira obra, O ser e o nada, Sartre descreve a característica essencial do homem: é a sua liberdade radical. Para Sartre o homem é um ser livre em seu próprio ser. Na citada obra há um jargão exaustivamente repetido por Sartre: “a existência precede a essência”. Isto é, o homem nasce e com o decorrer da vida constrói sua essência. A essência é construída basicamente pelas escolhas como valores, ideias, relações, gostos, crenças, etc. O existencialismo defende a ideia de que nossa existência pode ganhar um sentido que ainda não possui. Logo, Sartre defende que antes de tomar qualquer decisão, não somos nada. O ser humano se molda a partir das escolhas. E a sociedade passa a ser o espelho das escolhas e ações de cada um.

Diante de tanta liberdade, curioso é o próprio Sartre ter sido viciado em anfetaminas. Isto é, sua conduta não sustentou o que defendia. Na realidade, o problema das relações pode tirar parte da nossa autonomia. Isto é, toda escolha pessoal pode conflitar com a liberdade do outro. Daí o surgimento da frase: “o inferno são os outros”. Claro que Sartre teve suas razões para concluir isto pois seu país, a França, vivia a situação de terra arrasada após a Segunda Guerra Mundial.

Hoje a vida do outro tem se tornado cada vez mais vulgarizada pela divulgação de fatos, fotos e vídeos através da mídia, sites e redes sociais. Nunca foi tão fácil partilhar e importunar a vida alheia. Porém, viver num país democrático não dá o direito de infernizar a vida dos outros. É preciso dar atenção à afirmação de Sartre. Mesmo livre o homem mantém-se sob uma cruel dominação: a de sua consciência. Logo, o respeito à consciência do outro é imprescindível na relação intersubjetiva. Neste sentido, em princípio as relações humanas não são puramente conflito, mas essenciais para o processo de socialização. Ainda que as relações humanas carreguem em si o germe da tensão, o outro nunca é o inferno, mas impõe limite a nossa liberdade.

Sobre o autor

Miguel Debiasi

Frade da Província dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul. Mestre em Filosofia (Universidade do Vale dos Sinos – São Leopoldo/RS). Mestre em Teologia (Pontifícia Universidade Católica do RS - PUC/RS). Doutor em Teologia (Faculdades EST – São Leopoldo/RS).

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