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Mais gentileza, menos economia

Gislaine Marins

Certa vez, no auge da hegemonia televisiva, li um artigo no qual o autor avisava: “se você não educar, a televisão vai educar”. A advertência continua mais do que válida, visto que no mar de informações a que somos submetidos, não nos transformamos em campeões de natação, mas em náufragos. Afogamos sem saber se o que nos arrasta para o abismo é uma fake news ou a complexidade de conceitos que não dominamos. A ignorância nunca foi tábua de salvação.

“Eu não sabia” explica muita coisa, mas também gera frustração. É claro que grande parte dos despropósitos a que assistimos nos últimos tempos são fruto de desconhecimento e da falta de instrumentos para avaliar a realidade que nos rodeia. Igualmente, certos comportamentos desesperados são mais um pedido de socorro do que uma convicção. Todo mundo sabe que não há a menor condição de um regime militar voltar a ser instalado no Brasil, então só resta aos que embarcaram na aventura golpista lançar o último apelo: SOS, “Save our soul”.

Não sei como salvar a alma das pessoas, mas educar com gentileza já é um bom começo. Mais do que isso, é um início necessário, sem o qual as pessoas não conseguem nem mesmo entender a centralidade da economia e os seus efeitos na vida de cada pessoa, além de ser fundamental para o país.

É preciso fazer algumas premissas para abordar o tema. Em primeiro lugar, o brasileiro sempre se considerou mestre em simpatia. Ao longo do século passado, algumas teorias sociológicas contribuíram para cristalizar essa ideia. Por exemplo, graças a Gilberto Freyre, achávamos que tínhamos uma democracia racial. Enquanto isso, os elevadores de serviço, marca arquitetônica da nossa segregação racial, continuaram a transportar não apenas mercadorias, mas também trabalhadores – especialmente empregadas domésticas, porteiros, zeladores e entregadores em geral, não raramente negros – até que uma lei de 2003 esclareceu que nenhuma pessoa pode ser impedida de usar o elevador social. Nem todos viram com simpatia a perda a exclusividade para subir no elevador social.

Nós também achamos que a cordialidade é a nossa marca cultural. E é, como bem mostrou Sérgio Buarque de Holanda. No entanto, o seu conceito foi reduzido por leituras parciais a um sentido positivo, adocicando tudo o que vem do coração, sem considerar que as paixões irracionais, o ódio e a vingança também são sentimentos associados ao mesmo órgão. Na realidade, a violência da nossa sociedade cordial com frequência encontra justificação no cego coração para minimizar o horror, para desculpar os crimes cometidos por mão machista, sejam eles físicos, sejam psicológicos.

Enfim, seria interessante lembrar outras duas palavras que usamos como sinônimo de cordialidade, mas não são. A primeira é “cortesia”. O comportamento cortês tem a ver com a postura de corte, que se opõe ao “rude” comportamento da plebe. Na Idade Média, mais precisamente na época de Dante Alighieri, a cortesia torna-se uma forma de resgate social. O homem que não possui origem aristocrática pode tornar-se nobre pela envergadura moral e por suas ações. Com frequência, o amor cortês une um valente e leal cavaleiro à filha de um senhor feudal. Por isso, nessa relação prevalece a submissão do homem à mulher, como se lê nos poemas medievais. Por trás disso, porém, há uma sujeição social, como vemos também na representação que José de Alencar faz de Peri em relação a Cecília, no famoso romance “O Guarani”. A Idade Média custa a acabar, embora Dante tenha tentado mostrar um outro aspecto do comportamento cortês, ou seja, a elevação por meio da transformação intelectual do homem. Dito por outras palavras, o conhecimento salva.

A última palavra é “gentileza”. O termo vem de “gens”, que, a partir do latim, dará origem a “gente”, “gentílico”, “gentil”, mas também “genética”, “gênio” e “gentio”. Em geral, está relacionado a tudo o que tem uma origem comum, uma estirpe comum. É preciso mais consciência da “gentileza” nesse sentido: primeiro como reconhecimento de nós mesmos, como membros de uma comunidade, de uma nação, de um país. É necessário pensar que temos uma origem e consequentemente um destino que nos une ou nos destrói. Além disso, convém lembrar que a gentileza é, como a cortesia, uma forma de resgate, pois “gentil” era o homem de boa ascendência. A reputação não se constrói apenas pelo domínio econômico, mas pelos valores e pela forma como se exerce o poder e se expressa o comportamento.

A gentileza no século XXI é uma urgência não porque a grosseria perturba a nossa bondosa alma, mas porque é inadmissível tolerar a violência como instrumento de destruição das relações sociais e da própria democracia. Não basta a gentileza para realizar essa transformação, é óbvio. Contudo, sem essa compreensão de base, que nos agrega, que clama respeito pelas nossas origens e reciprocidade de tratamento, outros conhecimentos essenciais para o desenvolvimento de uma sociedade são como uma boia furada jogada ao náufrago.

Sim, há milhas a serem percorridas, braçadas a esgotar as nossas forças. O caminho é longo. Se tiver de ser percorrido numa canoa furada, será ainda mais penoso. Gentileza já! E logo em seguida: economia, trabalho, comida no prato, educação, gramática, etimologia, saúde, felicidade, vida. Yes, we can!

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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