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Maioridade

Gislaine Marins

Fiz 18 anos. Dezoito anos de distância. Dezoito de ausência. Dezoito que ultimamente viraram exílio. Dezoito de abstinência desse vício terrível que é a televisão brasileira. Estou mais feliz, mas estou mais triste.

Aos dezoito anos a gente se depara com as primeiras liberdades. Eu peguei o telefone e disse: "mãe, não volto para o Brasil". É que todos os caminhos levam ao mundo, pensei de Roma. E abri um livro.

A leitura é a nossa primeira experiência de evasão. A gente foge para buscar algo. Geralmente encontramos uma parte de nós. Muitas vezes encontramos o outro. Não o outro de carne e osso, mas a ideia de outro, que treina a nossa capacidade de abraçar as feras.

Porque o outro é diferente, o outro assusta. Lendo, enfrentamos os nossos medos e simulamos a aventura de mergulhar nos afetos, de sair com o coração arranhado dos abismos da paixão ou de sair vitorioso de uma batalha contra os nossos instintos.

A leitura é uma academia de alteridade, do eu com os outros imaginários. Mas que a gente pode encontrar na vida.
Fui para o mundo por causa de um livro, mas isso é mentira. Um livro é sempre herdeiro de muitos outros antes dele. Confesso que não foi o primeiro amor. Antes daquele livro já tinha me apaixonado por outros. O importante, porém, é que foi ele quem me trouxe para cá.

Na primeira vez, seis meses sem televisão. Só eu e os livros. Às vezes ia ao cinema. Descobri que os toscanos são geniais ao fazerem comédia. E assim eles não serão unanimidade nacional ou internacional, mas certificam a minha boca ao dar gargalhadas.

Mais tarde, descobri a televisão em casas alheias. Era preciso pagar imposto para ter uma. Muita gente possuía televisores clandestinos, sem registro e documentos legais. Nos casos de controle das implacáveis autoridades, ninguém jogava o aparelho pela janela como, sem o mesmo apego monetário, jogam imigrantes no mar. Não, com os televisores a tática era barricar-se dentro de casa e defender o forte até o último toque da campainha. Jamais abrir a porta se não foi avisado antes por telefone. Podia ser o fiscal dos televisores ou coisa pior. Sabe o que é desvencilhar-se de um vendedor do paraíso? Sabe o que é fechar a porta ao consultor que quer propor um novo plano telefônico? Na linha das portas abertas ao purgatório, os menos ofensivos eram os vendedores do jornal comunista. Iam embora sem insistir com a certeza de que iriam voltar.

Nesses dezoito anos não fiz assinatura da televisão brasileira. Não pedi notícias do que andava acontecendo na telinha. Nem mesmo com a chegada da Internet tive a curiosidade de fazer assinatura online. Depois da primeira crise de abstinência, o ouvido se acostuma a outras línguas e, principalmente, a outros assuntos. Mas, como disse, acompanhava pouco até a televisão local.

Confesso que me viciei em jornais. Não consigo ler apenas um e não me limito às edições locais. Analiso o tipo de papel, a reação do jornaleiro, o tamanho da folha, os jornalistas que assinam os editoriais. Leio na rede, as matérias abertas e as que são a pagamento, quando cabem no meu bolso. Compro os suplementos. Anos atrás li várias biografias de matemáticos.

Um mundo novo para mim. Descobri que a matemática que estudamos na escola até hoje foi estruturada na Itália na Idade Média. Chamem de milênio obscurantista. Não concordo: hoje temos mais obscurantismo no nosso umbigo do que os comerciantes medievais de Pisa nos portos de negociação com o Oriente.


Estou mais feliz depois desses dezoito anos. Ler, viajar e exercitar a difícil arte do encontro são as maiores vitórias da vida. Valeu porque aprendi e depois vivenciei. Investir em livros, viagens e encontros é a melhor despesa da vida. É a única coisa que resta: o calor da memória. Dinheiro é com os outros. A minha vida se conta pelo tempo, pela chuva e pelas flores que desabrocham.


Mas estou mais triste. A maioridade é o momento de encontro com a nossa solidão e com o desafio de trilhar o futuro com nossos pés. É uma tristeza que escolhe a sua melancolia. Prefere a saudade à constatação de não ter mais o mundo que deixou para trás na caminhada.

É uma tristeza maior de idade, que ainda não tem noção da sua finitude e como qualquer jovem acha que ainda há muito mundo por conhecer pela frente. É uma tristeza que não sabe voltar. Mas é uma tristeza que já entendeu o que significa não querer retornar. É uma tristeza grande.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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