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Injustiça social e cognitiva global

Miguel Debiasi

Todo ser humano é, por natureza, insaciável. Pretensões de conquistar algo melhor estão infusas em seu espírito, sua alma, na vontade humana. Com base nestas forças naturais, espirituais, psicossociais, psicomotoras, ele considera ir além em tudo que é de seu domínio, e atualmente pretensões desta natureza são muito fortes.

O contexto histórico não determina o ser humano. As situações históricas são produto de sua atuação, pois é capaz de construir e desconstruir os contextos culturais. Pelos estágios da história da civilização compreende-se nossa capacidade de atuação. A própria construção de conhecimento está na permanente transição de uma nova etapa da história. No dizer do filósofo alemão Dilthey (1833-1911) todo estágio da civilização implica conexão e encadeamento com a história, por uma intervenção e colaboração moral. Portanto, é característico dos dias atuais a conexão com a história, estágio articulado numa relação entre o passado e o presente, prosseguindo num conteúdo moral nos indivíduos.

No entendimento de Dilthey, em todo indivíduo, por seus atos éticos, é possível uma contribuição com tudo que é histórico. Dessa maneira, é compreensível a relação entre a injustiça social global com os períodos de dominação imperial. É visível a vinculação entre injustiça social com o injusto acesso à ciência, ao conhecimento. Para o filósofo alemão Hegel (1770-1831) só é possível compreender o ser humano num sistema, a humanidade é uma totalidade. Em outras palavras, só é possível compreender a pessoa como alguém que faz parte da história. A história é vista como o espaço de construção e atuação do ser humano. Tanto para Dilthey como para Hegel o ser humano é um sujeito da história. A história não é apenas fruto da ação subjetiva, mas da coletiva. Portanto, a história é espaço da universalização do indivíduo pela sua atuação moral, permitida pelo acesso ao conhecimento.

Para o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos (1940) há uma ligação profunda da injustiça social global à injustiça cognitiva global. Toda ausência de justiça social está ligada à falta de conhecimento. Essa interdependência é compreensível pela exclusão do pobre da história. A negação do pobre não deixa de ser uma ausência de ciência e de conhecimento feito consciência. Todo conhecimento, em última instância, tem uma interdependência com a ignorância, com os analfabetos, os alienados. Melhor dizendo, a existência de uma massa mundial de pobres, incultos e marginalizados é consequência de um sistema de conhecimento fracassado. A injustiça social é resultado de uma injustiça cognitiva.

Na realidade, o crescimento do número de pobres em termos mundiais demonstra a profunda relação entre a injustiça social e a concentração epistemológica, dos saberes, do conhecimento. O atual sistema mundial não só concentra domínio político, econômico, conhecimento, cultura, mas também pobreza e sofrimento à toda humanidade. Em suma, a luta por justiça social remete à conquista de saberes. Para ser bem sucedida a mudança do sistema mundial passa obrigatoriamente por um novo entendimento, o do acesso universal à educação, ao conhecimento. Isto implica proporcionar as mais amplas formas de conhecimento que são possíveis através de políticas públicas decorrentes da consciência de quem governa.

 

Sobre o autor

Miguel Debiasi

Frade da Província dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul. Mestre em Filosofia (Universidade do Vale dos Sinos – São Leopoldo/RS). Mestre em Teologia (Pontifícia Universidade Católica do RS - PUC/RS). Doutor em Teologia (Faculdades EST – São Leopoldo/RS).

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