História de Pescador
Se a literatura não serve e não deve servir para nada, é, contudo, um panorama e uma chave para entender o próprio panorama que cria e apresenta. Em tempos de falsidade, é preciso voltar ao que a literatura revela, pois contém os segredos da arte da mentira com cara de verdade.
Para escrever sobre o tema, a primeira coisa que me veio à cabeça foi Dostoiévski, com Crime e Castigo. Mas não era sobre a culpa que eu pretendia falar. Obviamente toda literatura é uma ficção, mas nem toda literatura tematiza a própria mentira. Foi aí que lembrei das histórias de pescador, um gênero típico da cultura popular e oral, que merece ser melhor estudado para compreendermos como funciona, como atrai e envolve o leitor.
Porém, não escrevi, pois estou de férias e tinha saído para passear. A escrita ficou para o retorno. Foi a minha sorte: estava caminhando sem um objetivo muito exato quando dei de cara, ou, mais especificamente, dei de pé com a "Calçada Bibliotecária", um trecho que leva à Biblioteca Pública de Nova Iorque, que eu acabara de visitar entrando pelo acesso lateral e saindo pela frente. Pois bem, nessa calçada havia um aforismo de Georges Braque, precursor do cubismo com Picasso: "A verdade existe, somente a mentira tem de ser inventada". Pronto, já temos a premissa. Vamos ao ponto.
1. O exagero
Qualquer história de pescador precisa conter um exagero reconhecido. Faz parte do pacto entre contador e ouvinte que a narração será marcada por fatos inacreditáveis.
2. O anzol
Como bom pescador, este tipo de contador de história precisa ter certeza de que o ouvinte irá abocanhar a sua isca. Para isso, o contador geralmente vale-se de peripécias caracterizadas por uma certa credibilidade. Por exemplo: "o peixe era tão pesado que o barco começou a afundar e eu tive que pegar um balde para tirar a água que inundava a embarcação". Obviamente, o ouvinte ainda não está acreditando que o peixe pudesse ser tão grande, mas é admissível que um pescador use um balde para retirar água de um barco que está sendo inundado. É o detalhe do balde que faz o ouvinte comer a isca e cair na mentira.
3. A surpresa
Uma boa história de pescador não pode se aproximar do desfecho sem conduzir o ouvinte a uma ruptura. A comicidade desse tipo de história está na capacidade do contador de ir criando gradualmente o ambiente para surpreender o ouvinte e fazê-lo rir. A risada é causada por um fato inesperado, mas compreensível.
4. O sujeito
O contador faz rir, mas não engana ninguém. Deve ficar claro para o ouvinte que o contador é um grande mentiroso, mas sabe divertir a plateia.
Epílogo: uma realidade sequestrada por contadores de mentiras.
O Brasil foi tomado por contadores de mentiras. As redes sociais são um ambiente propício para potenciais mentirosos ou propagadores de mentiras. Mas a história não faz ninguém rir. Qual é o problema?
Em primeiro lugar, o exagero não é considerado um elemento ficcional, mas um fato. São comuns fake news que multiplicam valores questionados em processos ou que atribuem a pessoas verbas institucionais. Além de carregarem a mão na hipérbole, fake news costumam perder o compasso no uso das metonímias. A graça do exagero que gera a comicidade desaparece para dar lugar a um uso indiscriminado de figuras de linguagem que deveriam ter um espaço bastante delimitado em textos informativos. Quem escreve mentiras usando deliberadamente esses instrumentos sabe que muitos leitores não estão suficientemente treinados pela leitura habitual para perceberem que a isca usada para fazer graça é a mesma empregada para enganar.
Como pescadores pacientes, os enganadores nas redes sociais também criam fake news misturando dados falsos a informações verificadas. Isso cria, como nas histórias de pescador, o efeito de credibilidade. Basta que o leitor encontre um dado verificável para abocanhar as mentiras e cair nas redes dos criadores e propagadores de mentiras.
As fake news também não deixam de usar o efeito surpresa, num contexto criado pelas semi-verdades que capturam o desatento leitor. A surpresa geralmente é um fato bombástico, capaz de abalar a sensibilidade de quem lê. Mas como nos casos anteriores, o resultado da surpresa não é o riso, mas a perplexidade, a indignação, a revolta. O efeito é emotivo e irrefletido, como o riso, porque mentirosos sabem que precisam tocar os brios dos leitores para gerar a sua reação e distrair a sua atenção em relação aos elementos incoerentes que poderiam ser observados se, em vez da emoção, o leitor empregasse a lógica e o espírito crítico.
O mentiroso precisa contar cada vez mais mentiras para não se desmoralizar. Como os contadores de histórias de pescador, precisa ser fiel ao papel, mas isso não é reconhecido pelo interlocutor enquanto a mentira não for descoberta. O mentiroso precisa ocultar a sua condição de enganador, enquanto o contador de histórias de pescador angaria prestígio pela fama de mentiroso.
Retorno ao ínicio: e a verdade?
Sim, a verdade existe, mas construímos mentiras constantemente. Se não lemos com olhar crítico o que recebemos e o que nos é repassado, especialmente quando se trata de texto reencaminhado e sem autoria, podemos cair na rede. Não na rede de uma história divertida, mas na rede sórdida da mentira com fins espúrios, que usa o leitor como cobaia e massa de manobra sem nenhum escrúpulo.
A literatura, que não serve e não deve servir para, nada é uma academia de ginástica para a mente. Ensina a ter olhar crítico, mas não complotista. Realista e não fantasioso.
Dito isso, vale a pena também ler Dostoiévski, para entender a culpa dos que delinquem e se justificam, mas não podem ocultar para si mesmos a verdade.
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