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Fibonacci, ou da ciência e do humanismo

Gislaine Marins

Fibonacci, ou da ciência e do humanismo

Corria o ano do Senhor de 1202. Francisco de Assis nutria o desejo de se tornar cavaleiro e de participar de uma cruzada contra os muçulmanos, a maior honra para um cristão na época. Enquanto isso, um matemático de nome Leonardo Fibonacci, em Pisa, publicava um livro no qual introduzia na Itália o sistema numérico árabe, baseado por sua vez no livro de Al-Khwarizmi (de onde a palavra algarismo), que incluía no sistema árabe a noção de zero, descoberta na Índia. Fibonacci tinha estudado na Argélia, sendo filho de um funcionário que representava os interesses dos comerciantes italianos na margem sul do Mediterrâneo. Conhecia bem o árabe, conhecia bem o comércio e conhecia perfeitamente a simplicidade de cálculo representado pelo sistema de dez algarismos hoje difundido no mundo inteiro. Nosso código escrito baseado no latim foi enriquecido pelos sinais árabes que representam os números.

Enquanto Fibonacci dedicava a sua vida ao ensino do cálculo de acordo com o sistema árabe, Francisco de Assis, filho de um comerciante de tecidos, aos poucos substituía a aspiração de glória nas fileiras dos cruzados pela humildade de se dedicar aos pobres. Em 1203, uma doença, uma das tantas que marcou a vida do Santo, impediu que ele chegasse ao sul da Itália para embarcar-se para Jerusalém.

No início do século XIII, a Itália perdia dois herdeiros talhados para o comércio, ganhava o sistema numérico dos inimigos declarados do cristianismo e uma visão da humanidade que redimensionava a relação do homem com a natureza. É surpreendente pensar que isso ocorreu quase ao mesmo tempo e aconteceu numa época em que a relação com os muçulmanos era abertamente conflitual, no plano econômico, político e religioso.

No ano da graça de 1219, Francisco de Assis encontrou-se com um sultão no Egito, mas o espírito que o animava então era completamente diferente das motivações juvenis. Francisco de Assis abria um caminho para o diálogo em um âmbito cultural onde, pouco tempo antes, um grupo de frades tinha não apenas falido, mas morrido por terem exaltado o cristianismo. Passados exatos oitocentos anos desse acontecimento, o ódio e a incompreensão ainda nos animam a reagir buscando o diálogo, a concórdia e o conhecimento como instrumentos para uma sociedade melhor, no respeito da diversidade. Nessa mesma época, o livro de Fibonacci sobre a numeração árabe cumpria o seu destino feliz, sendo lido por personalidades ilustres como o Imperador Frederico II, um soberano extremamente moderno e culto para a sua época, conhecido como estupor do mundo, que fez questão de conhecer o autor em 1226, quando visitou Pisa.

Essas duas histórias ocorreram paralelamente, enquanto as cruzadas ditavam o ritmo da política europeia e enquanto Frederico II promovia uma revolução cultural e política no sul da Itália. Em um mundo complexo, dominado por jogos de poder que fragilizavam inteiras regiões e por conflitos que instabilizavam as sociedades, a matemática prevaleceu sobre as disputas religiosas e o pacifismo de Francisco foi superior à mentalidade bélica da época.

Ano do Senhor de 2019. Às vezes dizemos, para criar um efeito retórico, que estamos retornando à Idade Média. Se com Idade Média nos referimos a Francisco de Assis e a Fibonacci, devemos exaltar a nossa esperança. Nos momentos críticos, em que se confundem ciência com ideologia, política com religião, nada melhor do que um grande matemático e um grande humanista para recordar que a famigerada “ideologia” que alguns afirmam querer combater não passa de um amontoado de pensamentos confusos, ilógicos, sem bases científicas e fontes documentais.

O ataque que professores e cientistas estão sofrendo nos últimos dias é, até o momento, apenas uma investida moral, com o objetivo de atingir a reputação dos que se dedicam à formação humana e científica dos nossos jovens. Contudo, é grave, pois é o primeiro passo para a aplicação de medidas concretas. É a ameaça que precede a ação. Diante de tal iniquidade em relação a profissionais que dedicam a vida ao ensino e à cultura da paz, quis recordar Francisco de Assis e Leonardo Fibonacci, dois ilustres filhos da Idade Média, que o obscurantismo não pôde esconder, que a história não deixou esquecer e que devem ser um exemplo para todos os que fazem o seu trabalho corretamente, pensando no futuro dos que se nutrirão das suas lições.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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