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Então todo mundo vai ter triplex?

Gislaine Marins

Em uma entrevista concedida à Emissora Nacional de Portugal em 1974, a escritora Sophia de Mello Breyner Andresen reflete sobre a importância dos livros e da casa para salientar a necessidade da beleza na vida do ser humano. A beleza, para ela, não é um artigo de luxo. Por isso, como escritora, lamenta que os livros não sejam acessíveis a todos e que sugere que na construção das casas populares trabalhem os melhores arquitetos. Afinal, afirma, “fazer um prédio feio é tão caro como fazer um prédio bonito”.

A pergunta que aparece no título deste artigo é uma ironia a respeito de um comentário do Presidente do Brasil sobre a necessidade de casas melhores para as famílias pobres. Acho que merece uma resposta literal: se todo mundo não pode ter triplex, que tenha o melhor com os recursos à disposição, e da maneira mais bonita.

O exemplo mais radical da ausência de beleza está na aniquilação causada pela guerra. Ninguém pode ficar indiferente a escombros e a todos os sentimentos que a sua visão provoca: ódio, indiferença, destruição.

Da mesma forma, é impossível não sentir bem-estar ao circular por um ambiente bonito, limpo, arborizado, com uma mobilidade acessível, com uma paisagem agradável. Se viajamos à procura de um lugar estimulante e aprazível aos nossos olhos, certamente sabemos que as cidades que habitamos possuem vários problemas.

Problemas que poderíamos a ajudar a resolver. Começando por não odiar quem tem o sonho de uma moradia melhor. Uma moradia digna não é um privilégio, é um direito fundamental. Ou será que alguém considera natural que seres humanos vivam ao relento? Posso perguntar de outra forma: o que faz com que certas cidades sejam tão agradáveis para nós? Alguma vez chegamos a pensar no sentido de comunidade e de inclusão? Quem possui uma casa, um trabalho, um salário digno, sentindo-se realizado por tudo o que faz e fez, poderia achar que a maioria das pessoas não gostariam de sentir o mesmo?

Certas ironias são muito estranhas para mim. Não têm a graça de levantar uma crítica com o gosto do sorriso matreiro, mas o amargo das palavras envenenadas, que atiçam a discórdia e revelam desamor como princípio da relação interpessoal. É tão desnecessário esse tipo de ironia! É inútil inclusive para quem a utiliza, pois ninguém irá pensar: nossa, que comentário inteligente! Ninguém irá aplaudir como expressão de um sucesso pessoal modestamente silenciado. Ninguém irá apreciar como exaltação de um egoísmo que costuma livrar-se da solidariedade com uma ordem: se quiser ser como eu, esforce-se mais!

Apesar disso, sei que há pessoas que secretamente concordam com essa ironia. Concordam porque ingenuamente acreditam que para ter um lugar ao sol é suficiente fazer tudo direitinho, esquecendo que o mundo está dividido em classes. Aqueles que se encontram nas classes mais baixas precisam percorrer um caminho muito mais longo, com muito menos instrumentos para auxiliar a sua caminhada.

É suficiente pensar na educação: quem teve pais que podiam acompanhar os estudos dos filhos e enriquecer a experiência de aprendizagem com viagens e visitas a museus e a bibliotecas possui muito mais instrumentos para superar as dificuldades da formação do que alguém que não possui essas condições de base. Quem estuda em um quarto arejado não tem o mesmo desconforto de quem estuda em um casebre com goteiras.

Uma vez fizeram um amigo secreto no meu trabalho e pediram para colar no mural alguma dica de presente que gostaria de receber. Eu escrevi: “gostaria de ganhar uma cobertura na Piazza di Spagna, no centro de Roma. Mas se não der, pode ser qualquer coisinha. Muito obrigada.” Um colega perguntou se eu estava brincando. Respondi: “de jeito nenhum. Vocês perguntaram o que eu gostaria e eu disse o que eu realmente gostaria de ganhar.” Lembrei dessa história porque a ironia contida na pergunta “então todo mundo vai ter triplex?” contém esse conteúdo: certas pessoas não merecem o sonho. Mais do que isso: certas pessoas não merecem nem os direitos fundamentais.

Não sei se as pessoas sabem que no centro de Roma, nesses prédios históricos que nos encantam, ainda há pessoas pobres que vivem nas antigas casas populares – que para nós são prédios de um valor histórico e cultural inestimável. Apesar da especulação imobiliária, o Estado ainda tenta manter um pouco de diversidade de classe, porque condenar todos os pobres à periferia, criando uma infinidade de guetos, é também estruturar a cidade como modelo de desigualdade. Um dos exemplos mais recentes de inclusão social foi dado pelo Papa Francisco, concedendo a moradores sem-teto alguns apartamentos com vista para a cúpula da Basílica de São Pedro. Não é o caso do meu recado sobre a cobertura dos palácios da Piazza di Spagna, mas a brincadeira vale para isso: para lembrar que sonhos e direitos devem ser de todos e não um luxo.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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