Carta do leitor
Antigamente havia a carta do leitor e o crivo da redação para selecionar o que merecia ser publicado e comentado pelo autor. Daí vieram as redes sociais e a desorientação geral diante das novas possibilidades de expressão. As páginas virtuais da imprensa tornaram-se plataformas onde escrever tudo o que passava pela cabeça dos leitores. Alguns espaços ficaram então restritos a assinantes ou seguidores cadastrados, mas a realidade é que o mundo nunca mais pôde ficar indiferente àquilo que as pessoas queriam dizer, reclamar, inventar, ofender, ou, genericamente falando, opinar.
Tomei ranço de opinião. Quem não sabe opina. E pensar que é uma palavra bonita, antiga, que contém o prefixo op- ligado à visão, como em “óptico”, hoje escrito simplesmente “ótico”, mas relacionado também a “optar” e a “ótimo” (antigamente “óptimo”), ou seja, a ação de escolher e de ser mais do que selecionado.
Quem não sabe dá palpite: outro vocábulo que hoje em dia me incomoda, como o bater incontrolado do coração, indicando a nossa falta de equilíbrio. Não por acaso, a arritmia também é chamada de palpitação.
Dito assim, no entanto, parece que sou uma pessoa conservadora. É verdade que me criei ouvindo na escola que quando um burro fala ou outros abaixam as orelhas, mas a implicância não tem a ver com hierarquias ou com os papéis invertidos.
O problema é que as pessoas escrevem sobre aquilo que não leram, sobre fatos que não ocorreram e sobre assuntos que não dominam. Em outros termos: a questão é sobre a ruptura do pacto entre autor e leitor, entre acontecimentos e consequências, entre temas e as suas esferas de pertinência. Já escrevi uma porção de vezes sobre mentiras, notícias falsas, confusão entre fato e ficção, mas a realidade insiste em exigir que eu volte ao tema.
Estamos a poucas semanas do início de um novo mandato presidencial e ainda há pessoas que não só discordam do resultado das eleições, mas inventam fraudes, anunciam golpes de Estado que nunca serão concretizados, aguardam uma saída fantástica para as suas frustrações mal resolvidas. Digamos claramente: a tristeza é legítima
. Quem esperava um resultado diferente tem direito de lamentar o resultado. Lamentar, sim; contestar, não. Entristecer-se, sim; pedir golpe de Estado, não. Chorar, sim; bloquear a vida das pessoas e das cidades, não.
Antigamente havia o crivo da redação para optar e opinar sobre o que era publicável ou não. Hoje a única barreira está na possibilidade de desviar a nossa atenção das bobagens, limitar os cliques e conter a monetarização dos propagadores de mentiras. Mesmo assim, é difícil ficar imune, pois os algoritmos nos expõem ao opinionismo generalizado e nos direcionam para questões que não podem ser filtradas pela razão, quando o único instrumento informático empregado para a difusão é o da popularidade.
Reconheço que é uma avalanche e que estamos em estado de emergência informacional. Às vítimas e também aos crédulos posso apenas perguntar: vocês realmente acham que notícias graves, capazes de abalar profundamente as nossas vidas e a vida do país, seriam enviadas por uma mensagem no celular, reencaminhada por um amigo, que recebeu de outro amigo ou conhecido, e que vocês teriam uma informação privilegiada antes que esta notícia fosse oficialmente comunicada e divulgada pela imprensa?
É que em absolutamente nenhum lugar do planeta os recentes golpes foram divulgados por mensagens a ilustres desconhecidos, à massa de apoiadores. Pelo contrário, a invasão da Ucrânia foi visível e dolorosa, o retorno dos talibãs no Afeganistão foi acompanhado por um êxodo espantoso, as manifestações no Irã são marcadas por assassinatos brutais. Enquanto isso, no Brasil, alguns acreditam terem informações privilegiadas de um hipotético golpe, de um fantasioso resgate por parte de civilizações extraterrestres, de sinais ocultos em cada ação de ordinária administração do Estado.
Não sou conservadora, faço questão de enfatizar. Apenas lamento a ignorância generalizada e tenho certeza que a formação em tempos de informação incontrolada não é uma tarefa fácil para quem ensina e nem para quem aprende. Contudo, se não há mais crivos que selecionam e nem cartas a serem recebidas, há futuro. Isso é um bom motivo para não desistir de lutar contra a ignorância, contra as mentiras e contra a desinformação.
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