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Até as árvores conversam

Gislaine Marins

Os cientistas descobriram que as árvores dispõem as suas folhas de maneira tal que possam aproveitar o melhor dos raios de sol. Além disso, elas respeitam o espaço alheio, para não cobrir as folhas das árvores vizinhas. As raízes das árvores também se comunicam: elas se tocam enviando sinais que indicam umas às outras onde podem encontrar mais água. Assim sobrevive não apenas uma árvore, mas uma floresta.

Os animais se comunicam: as abelhas e as formigas trabalham em cooperação, os lobos uivam em grupo para avisar da presença de uma presa, os leões organizam estratégias para capturarem as gazelas e as piranhas nunca saem dos seus cardumes.

Só o ser humano é diferente. E ninguém diga que isso é culpa da literatura, a forma mais complexa de comunicação. Não, senhores. A literatura faz o possível, mas o ser humano tem vocação para piorar as coisas.

Vejam só: no outro dia eu estava lendo um artigo cujo autor tentava explicar de forma plausível certos absurdos da nossa realidade. Achei que tinha ficado com pena. Na verdade, fiquei com um pouco de raiva. Afinal, a literatura tenta há milênios dar um sentido às fatalidades da vida e aí vêm os homens com os seus absurdos a serem razoavelmente explicados, como se fossem parte normal da vida. Não são. Absurdos são e devem ser exceção na vida, são e devem ser evitados na literatura. Somente maus escritores recorrem ao absurdo por falta de solução admissível. Aos que disserem que há livros surpreendentes, respondo: a surpresa não é necessariamente absurda, pelo contrário, é resultado de fatos encadeados de tal forma que seja, de certa forma, esperada.

É como dia de caça: a onça nunca sabe se realmente irá beber água, mas a gente espera que no fim da história aconteça algo que faça ela beber. Pelo contrário, a surpresa é ela morrer de sede, mas isso não é absurdo, é surpreendente. Absurdo seria ela cair da árvore em cima do bonde andando e perder o fio da história.

Não duvidem: a realidade absurda está tentanto fazer as pessoas acreditarem que as onças estão perdendo o bonde da história ao caírem das árvores.

Isso complica absurdamente a tarefa de explicadores da vida, de escritores e de críticos literários. Pobres de nós. E pobres leitores ou aventureiros na arte da compreensão. Com bússolas anda difícil entender o que está acontecendo, imagina navegar a vida sem leituras?

Hoje, mais do que nunca, é preciso ler, e a literatura é isso: uma ousadia saída dos círculos sagrados, que deixou de ser linguagem entre os deuses e os homens para ser a mais sublime comunicação humana. A literatura mostra que fazer aparecer um diabo no fim da história para empurrar a onça da árvore e fazê-la morrer atropelada não tem o menor sentido. Pelo contrário, a literatura narra relações entre homens e natureza, desde o tempo em que onças se transformavam em pessoas e as pessoas viravam onça. Por meio de sugestões e figuras de linguagem, estimula o leitor a pensar nos problemas da vida e dá instrumentos para aprender a resolvê-los de maneira autônoma. A literatura é uma escola sem número de matrícula e sem formatura. A pessoa lê, aprende, mas não se forma nunca.

Também pudera: os homens fazem de tudo para estragar a realidade, desafiar a beleza da literatura e arruinar o prazer da leitura. Mentem: e fazendo isso sistematicamente, as pessoas já não sabem se o fingidor é o poeta, o governo ou o técnico que ousa explicar a natureza das onças. Distraem: em vez de irem direto ao assunto, como faria uma onça diante da sua presa, perdem-se em comentários como a cor da calcinha da onça vista pela janela do bonde antes de ser atropelada caindo da árvore. E de nada vale que o técnico diga que a roupa íntima não altera as estatísticas de onças atropeladas por bondes ao caírem das árvores. O atropelamento deixa as pessoas tão chocadas a ponto de não pensarem o óbvio: que onças pulam das árvores. Só pessoas podem cair das árvores e do cavalinho, mas a distração é tamanha que elas andam perdendo o bonde e caindo do cavalo, enquanto acham que o problema é o efeito do atropelamento.

Os homens matam a verdade ou pelo menos a plausibilidade. A mentira deslavada deixa até o mais experiente e fantasioso escritor de bochechas vermelhas. Já não é possível responder razoavelmente diante da derrisão escancarada, da certeza de que nem a mais evidente mentira será colocada no seu lugar. Posso trocar onças por elefantes nessa história e o resultado continuará o mesmo: absurdo. É a morte da comunicação como tínhamos conhecido até hoje. Vivemos a fase da implosão, da podridão corroendo as entranhas enquanto nas redes compartilhamos sorrisos e curtidas. Afinal, as redes também não são a realidade, mas uma vida paralela na qual gostamos de acreditar. Mas ai de quem contestar a notícia anônima repassada pelo whatsapp, não é?

Até as árvores conversam. Conversar é um verbo bonito, que evoca o movimento de um para o outro em companhia. A palavra vai e volta, no caminho se transforma, cresce, frutifica. A conversa entre as árvores cria bosques. E eis que os escritores são desafiados a ir além, explicitando de maneira radical o absurdo em que estamos mergulhados. Se quiserem entender o que estamos passando sob o império das fake news, leiam literatura. Se não entenderem a literatura, não se preocupem muito: um dos objetivos da literatura é mostrar que estamos sob o domínio da ininteligibilidade. A falta de sentido precisa ser percebida para ser enfrentada. Encaremos os absurdos, cara a cara. Como árvores diante do madeireiro, como onças diante do caçador. Cada um tem o seu dia, quem sabe o nosso será aquele do leitor em via de extinção, mas que despertará a comoção alheia e quem sabe uma conversa, como a comunicação entre as árvores, que partilha a luz do sol, não engana e não tira o lugar de ninguém. Esperamos como semente o retorno da primavera.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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