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A inveja em tempos de cólera

Gislaine Marins

“Mal secreto” é o mais célebre poema brasileiro sobre a inveja e os sentimentos que não se estampam no rosto. Se a gente pudesse ver no semblante a cólera que espuma... nem sentiria inveja. Mas isso já era. É necessário um certo esforço para justificar o tema e explicar o que o coração não sente porque os olhos não veem a face por trás da nossa máscara. Hoje tudo está à vista. É tempo de ódio explícito.

Apesar disso, vale a pena recordar a história da inveja entre nós, mesmo sob o risco de parecer pitoresca. Em 1972, Jards Macalé gravava a canção “Mal secreto” aludindo não apenas ao famoso poema de Raimundo Correia, mas fazendo dissonâncias com uma bem comportada canção do rei do ie-ie-iê, por meio de versos como “Corro, choro, converso, / E tudo mais jogo num verso”. Diante do Rio de Janeiro, Macalé chorava, de olhos vermelhos, e nada ia para o inferno, porque talvez todo o mal já estivesse ao seu redor.

E estes não seriam os únicos a dedicar tempo e tinta à inveja. Como não lembrar o romance “Mal secreto”, de Zuenir Ventura, sobre esse sentimento tão entranhado na nossa cultura? Desejamos o que desconhecemos, é especialmente isso o que move a  inveja: a ignorância. Trata-se de um sentimento mesquinho, é verdade. Contudo, fica difícil não ter saudades desse bom pecado das nossas ilusões perdidas e do mal disfarçado para não desmoralizar o invejado.

A emoção do momento é a grosseria pura e simples, sustentada pela mais escrachada ignorância. Foram-se os tempos em que uma pessoa era famosa por ter um talento, por ter uma qualidade... invejável. Hoje a admiração e o sucesso recaem sobre a coragem de mostrar publicamente a total indiferença em relação ao conhecimento e de ostentar de maneira provocatória as opiniões mais extravagantes. Se a lógica não tem mais lugar no mundo, que venham a terra plana, os extraterrestres, as vacinas inúteis, as mais fantasiosas teorias que jogam por terra séculos de árdua e meticulosa construção do conhecimento científico e abrem as alas da superstição, do saber mágico, infundado, propagado com a força dos algoritmos, do poder econômico que financia a indústria planetária da burrice, com as armas do convencimento, do temor e, não raramente, do cômodo anonimato. Informações falsas dificilmente possuem autoria.

Milan Kundera escreveu um romance maravilhoso sobre a ignorância, dando a esta palavra um sentido muito mais amplo do que o usado até aqui. Ignorar para ele é poder evitar a dor da ausência e combater a saudade. Se a inveja é alimentada por aquilo que ilusoriamente supomos, a ignorância tem muitas faces. É causa de equívocos, é resultado da dissociação que nos é imposta, impedindo que tenhamos acesso a informações com credibilidade e fundamento, transforma-se em característica comum e que nos acomuna. Já não temos vergonha de não reparar naquilo que não sabemos, que nos é vetado conhecer e que não queremos ter o trabalho de compreender. A ignorância aninha-se sorreteira como o ópio: mata docemente, sem que tenhamos noção do veneno que nos consome. A ignorância se confunde até mesmo com o ódio, tão em voga nos dias de hoje. Exprimindo uma forma de rudeza, às vezes é difícil identificar onde acaba a falta de saber e começa o orgulho da própria insapiência. É provável que a falta de conhecimento seja uma poderosa alavanca da nossa arrogância. O que é a inveja diante disso?

Intuímos, apesar de pouco saber e entender sobre o que nos aconteceu, que buraco é uma palavra sem fundo, precipício é o status quo da queda livre. Percebemos que todo abismo é sombrio e que é na escuridão que alimentamos os maiores sonhos.

É tempo de imaginar outros epílogos, com extravagância inédita e criatividade: é uma batalha que a cultura não pode perder, embora conte apenas com memória, métodos, imprevistos, inteligência e nenhuma rede social, capaz de difundir verossimilhanças de forma viral. A cultura não tem robôs. Se quisermos nos salvar, terá de ser com a nossa humanidade, nossas leituras, nossa bagagem, nossos saberes. Não será certamente com os algoritmos, a ostentação e a cólera que espuma e destrói.

E se as nossas parcas armas não forem eficazes? Bem, ainda temos a altivez que resiste a uma realidade sombria e degradante. E, talvez, esta postura excêntrica tenha a capacidade de suscitar inveja em alguém, sem que este alguém saiba que por dentro nos sentimos derrotados, mas paradoxalmente vitoriosos por não pertencer à maioria, à massa dos indiferentes. Ganhar às vezes é perder. E invejar, este mal descrito em prosa e verso, às vezes é uma estrada torta para sair dos mais evidentes desastres.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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