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A cidade lugar da amizade social

Miguel Debiasi

A liberdade pode-se apresentar como um dos topos que domina os espaços culturais, sociais, políticos e religiosos da Idade Contemporânea. Na violação dos Direitos Humanos, na explosão da intolerância, ódio, xenofobia, racismo e outras discriminações étnicas e sociais provocaram fissuras na liberdade e demarca que será preciso outra ação virtuosa, a contrapor essa realidade. A amizade social funda raízes no paradigma da liberdade, desemboca na fraternidade e na transformação da sociedade.

Vivemos num tempo como um divisor de águas. Tempos que desencadeiam as guerras genocidas pela disputa de capital, mercados e territórios para avançarem os imperialismos e as políticas neocolonialistas. Este cenário internacional está bem descrito, descabe aprofundar aspectos variados de nacionalismos imperialistas, de concepções étnicas exclusivistas, da política externa movimentada na produção e comércio bélico, armas, munições, equipamentos e tecnologia militar. O objetivo é dominar o outro, ainda que seja necessário abarcar religiões para estes propósitos nefastos. Estas disputas nacionalistas e imperialistas provocam distorções governamentais, institucionais, jurídicas e rejeitam os caminhos democráticos e as relações diplomáticas.

Desse contexto mundial emerge a necessidade de afirmar a amizade social, reivindicação para uma verdadeira humanidade que busca soluções teóricas, políticas e institucionais para a coexistência pacífica e harmoniosa dos povos, nações e grupos. A amizade social como virtude e alicerçadas em argumentos de ordem social, política, teológica e religiosa. Amizade social que está para a vida e que consolida direitos naturais e regras éticas a ter importância significativa para as relações humanas.      

O filósofo grego Aristóteles (384-323 a.C.) em sua obra Ética a Nicômaco, capítulo VIII apresenta uma longa argumentação filosófica sobre a amizade, como virtude e ato fundante da polis, da comunidade e da cidade. Na introdução da obra argumenta: “amizade é uma virtude ou envolve a virtude, além do que constitui uma exigência mais imprescindível da vida – ninguém, com efeito, optaria por viver sem amigos, mesmo que possuísse todos os outros bens”.

Todas as riquezas e bens são inferiores a amizade, ela é a maior, a única, que parece ser imprescindível para uma vida propriamente humana. O filósofo leva-nos a refletir sobre a subsistência que precisa da economia, dos bens materiais, necessários para satisfazer as necessidades humanas. Mas, para uma vida prudente e equilibrada os bens são insuficientes, será preciso de outras mediações que evitem os excessos extremos. Tudo na vida perde significado sem a amizade, ela é o supremo ato humano, eixo ontológico, o amor mútuo necessário para a vida.

Tendo-se passado vinte quatro séculos da reflexão de Aristóteles, a amizade passa a ser colocada como questão central para o debate cultural-religioso, social-político e para ação de evangelização e dos movimentos humanistas. O Papa Francisco atento aos sinais dos tempos lança a encíclica Fratelli Tutti, pela qual convida a humanidade a refletir sobre a importância da fraternidade e da Amizade Social. A perspectiva do Papa vai em direção à reflexão de Aristóteles, ainda que tenha acrescentado a amizade à palavra social. A amizade social de Francisco está em função da integração humana, cultural, econômica, social e política com os povos vizinhos. A amizade social é um ato educativo e libertador que vem do amor ao próximo. Trata-se da relação humana indispensável para se construir a integração universal, a fraternidade planetária.

A cidade é lugar da amizade social. A cidade a que nos referimos é a idealizada para toda humanidade, lugar de viver a amizade social como dom, graça, virtude, intercâmbio, gratuidade, amor eficaz, caridade fecunda e íntegra, diz o Papa. Este modelo de cidade contrapõe-se ao modelo vigente estruturado por grandes muros de concretos, de elevada quantidade de câmeras de vigilância, de guardas armados, dos crescentes prédios e condomínios de luxo como espaço de consumo.

A cidade é um mundo fascinante, hoje muito motivado por um sistema operacional de consumo, economia, tecnologia, como diz Zygmunt Bauman o “templo do consumo”. A crítica de Bauman pode nos levar a pensar numa nova cidade, onde as relações humanas sejam prioritárias. Esta possibilidade está na origem da cidade, como espaço de convivência familiar, social e aconchegante. O escritor cubano, Ítalo Calvino, escreve “quem viveu a cidade uma vez nunca mais consegue esquecê-la, porque ela é uma imagem extraordinária de memórias, recordações e de itinerário humano”. Nossos pés, coração, mente e vida estão na cidade.

Na cidade é lugar de consolidação das verdadeiras relações humanas, de preparação de indivíduos para a fraternidade e amizade social. A teologia reflete que o próprio Deus adota a cidade como seu lugar de revelação e de ação. Ele é o grande missionário. É dele a iniciativa e a missão de tornar Jerusalém terrena na cidade referencial. Uma cidade modelo, mesmo maculada pelo pecado, produziu uma antevisão da verdadeira da paz de Deus, perspectiva anunciada pelos profetas (Isaías 2,2-3; 60,14-22; Miquéias 4,12). A missão de Deus pode fazer da cidade injusta concretizar a cidade celeste, na qual, todos os humanos são acolhidos a ponto que nenhuma teologia e Igreja pode desconsiderá-la (Apocalipse 21,9-11).

Convenhamos, dado a realidade mundial, hoje, entra para topos dos debates importantes a questão das relações de amizade social, que pode desembocar na liberdade, na fraternidade universal e na transformação da sociedade como um todo. O ideal divino para a cidade é anunciado no nascimento de Jesus Cristo ao proclamar a paz na terra e a harmonia entre as pessoas, a amizade social (Lucas 2,14). Nessa experiência, guerras, xenofobias, ódio, intolerância e qualquer outra discriminação étnica e social não encontram solo fecundo. Eis o desafio de nossas cidades terrenas.

Sobre o autor

Miguel Debiasi

Frade da Província dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul. Mestre em Filosofia (Universidade do Vale dos Sinos – São Leopoldo/RS). Mestre em Teologia (Pontifícia Universidade Católica do RS - PUC/RS). Doutor em Teologia (Faculdades EST – São Leopoldo/RS).

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