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Um ano novo com leveza de borboleta

Miguel Debiasi

 

O texto bíblico escreve “tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu” (Eclesiastes 3,1). Estamos em passagem para o Novo Ano, sobre o qual, depositamos esperanças de realizarmos muitos projetos significativos para a felicidade pessoal e bem-estar social. A passagem de ano é ocasião para uma reflexão e para recomeçar a vida sob novas motivações.

Na vida, toda passagem é significativa. Mais que um simples rito a passagem é um processo. É um crescimento, a construção da nossa existência. Da passagem da tuba uterina a última para casa eterna, a vida humana é uma permanente travessia rumo ao novo e ao desafiador. Dia após dia realizamos a passagem sendo impossível estacionar no tempo, nem mesmo a morte tem poder de interromper esse percurso da vida e do tempo. O ser humano por força de sua natureza é um passageiro que dá sentido ao tempo vivido. A cada novo ano renova-se o sentido da vida e do tempo.

O tempo tem uma significação para todos. Nós cristãos buscamos viver a significação do tempo à luz dos textos bíblicos, os quais apresentam duas compreensões. Um sentido está relacionado a chronos, que é tempo astronômico ou das passagens dos segundos, horas, dias e anos, algo do tipo: “há o tempo de nascer e o tempo de morrer; tempo de prantear e o tempo de saltar de alegria; tempo de ...” (Eclesiastes 3,1-8). A passagem do Novo Ano refere-se a esse tempo. A vida inteira é marcada pela experiência desse tempo, em que se conta as horas, dias, semanas, mês, anos, décadas.

Outra compreensão refere-se ao tempo como kairós. Trata-se do tempo oportuno, carregado da presença d’Aquele que é o “Senhor dos tempos”. Jesus ao responder aos fariseus, observantes severos ao dia de sábado, dizendo que o “Filho do Homem até do sábado é Senhor”, apresenta sua compreensão de tempo (Mateus 12,8). Nisso compreende-se o tempo como uma oportunidade para o crescimento da alma, do espírito, das virtudes, das capacidades e da experiência com Deus.

Kairós é o tempo favorável e que plenifica a existência humana. É o tempo benéfico para o crescimento da consciência. É o tempo vivido como dom, nele está a generosidade e a bondade de Deus (2Coríntios 9,11). O kairós é o tempo da graça. É o tempo em que Deus continua chamando o pecador mesmo que ele continue em sua vida pecando, como ensina Jesus aos escribas e fariseus: “quem não tem pecado atire a primeira pedra” (João 8,7). Kairós é o tempo da fé. É tempo de crer: “não te disse que, se creres, verás a glória de Deus” (João 11,40). 

Na travessia de ano nos perguntamos que fizemos com o tempo concedido. A pergunta pelo que fizemos do tempo torna-se mais latente pelos contextos vividos em que triunfaram as divisões e desigualdades sociais, as guerras, ódio, intolerância, racismo, julgamentos moralistas e preconceituosos. Esses contextos impactaram o tempo de forma negativa e em muitos casos foram causas de ruptura de relações, término de projetos, perda de entusiasmo e de apatia das motivações humanas.

Neste tempo de passagem de ano, parecem sinais e fatos reais que o mundo está em colapso, às nações em conflitos, ambientes sociais que acentuam rupturas irreconciliáveis. Há a convicção que a civilização contemporânea vive um tempo de crise, causada pela disputa de domínio político e econômico travada pelas grandes potências mundiais. Esse tempo de crise global impacta diretamente na vida pessoal, coletiva e de toda a humanidade.

A crise política e diplomática estabelecida a nível mundial em que poderosos Estados com volumosos recursos econômicos e bélicos financiam guerras entre países, faz pensar que o tempo de paz está longe de ser estabelecido. Nem mesmo o grande clamor social mundial pela paz que tem levado multidões de pessoas às ruas pelos quatro cantos do mundo tem conseguido agrupar força suficiente para contrapor os responsáveis pelas guerras. Hoje, em cada ser humano que ergue a bandeira da paz mundial está propagando a mensagem do Evangelho: “bem-aventurados os que promovem a paz” (Mateus 5,9).

As portas do novo ano, infelizmente, nos deparamos com forças políticas, econômicas e midiáticas que promovem a violência e o empoderamento de déspotas com pretensões de dominar o mundo. A violência e o domínio político, econômico, bélicos contamina o tempo chronos e do kairós, adoece as relações humanas, oprime a todos e exclui os indefesos e desamparados. Nem o tempo do chronos e do kairós se estabelece e se vive sem a paz, liberdade, solidariedade, justiça social e mundial.

Na passagem do Novo Ano nos remetemos ao nosso interior, local que brotará novos desejos, novas motivações, pensamentos e luzes para sermos mais humanos possíveis, pessoas sedentas de viver num novo tempo do chronos e de experiência de kairós. O Novo Ano pode ser o tempo da paz do mundo, da paz entre as nações, da paz entre as pessoas, da paz dos ambientes sociais e da paz do universo. Esse tempo pode ser fecundado diariamente pelas pessoas de bom coração e por ações que promovem a vida, persuadindo até os inimigos da paz (Mateus 5,43-44).

A paz e a justiça social mundial não vêm do poderio de guerra, mas das pessoas e sobretudo dos governantes estadistas que colocam o ser humano como valor inviolável. O tempo oportuno e favorável nasce da consciência justa e ética. O Novo Ano pode nascer da interioridade, do coração convertido ao bem-comum e aberto ao dom do Ser Superior que com sua benevolência nos concede um novo dia como graça e bênção.

De sumo bem seria se nas vésperas do Novo Ano as autoridades mundiais iniciassem a contagem regressiva para dar fim a violência, a guerra e a desigualdade social para marcar a passagem de um novo tempo, de virada universal não só no calendário civil. Mais, iniciar o Ano Novo, do bem coletivo mundial como o maior presente para todas as civilizações. Que o Ano Novo comece como uma passagem de Páscoa, da escravidão para a liberdade (Levítico 23,5) e termine como um novo Pentecostes, vendo todos os povos reunidos no entendimento e no reinado da paz (Atos dos Apóstolos 2,1-4).

Na nossa humilde esperança de cidadãos comuns que o Novo Ano venha como uma festividade, um culto, uma celebração, com leveza de borboleta.               

 

Sobre o autor

Miguel Debiasi

Frade da Província dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul. Mestre em Filosofia (Universidade do Vale dos Sinos – São Leopoldo/RS). Mestre em Teologia (Pontifícia Universidade Católica do RS - PUC/RS). Doutor em Teologia (Faculdades EST – São Leopoldo/RS).

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