País do futuro
Somos o país do futuro. Um povo capaz de chorar por um museu, um povo capaz de resistir à destruição da maior floresta do mundo, um povo capaz de viver com a memória dos parentes assassinados no campo e nas favelas, um povo capaz de sobreviver aos casebres incendiados, aos escorraços da polícia sob as pontes que transformam em teto e aos jatos de água gélida nas noites frias de inverno, este é um povo destinado ao futuro. Ao nosso melhor futuro.
Quando o fogo queima o corpo, primeiro a pele incha, depois cai, junto com a linfa. Em seguida, começa o processo de cicatrização, a pele endurece e se escurece. Por fim, depois de muitos meses, fica apenas a mancha e a recordação da dor. Somos um povo escurecido e endurecido pelas labaredas da história, mas ainda precisamos de tempo para reelaborar a nossa dor. Vivemos sob o impacto das tragédias, com a raiva a ponto de explodir na boca.
Mesmo assim, somos o povo com a maior capacidade para transformar o destino que traçaram contra a nossa vontade. Não sou eu que digo, é a história e a literatura. Não há herói que tenha tido vida fácil. Não há batalha surpreendente que não tenha sido vencida contra todos os prognósticos. Não há sobrevivente de uma doença devastante que não tenha desafiado a morte.
Temos tudo: injustiças, desigualdade, prepotência, violência, indiferença, ignorância, epidemias, devastação, incêndios, corrupção. O que poderia faltar para exaltar o heroísmo do povo brasileiro? Falta o elemento agregador, que certamente já existe, mas é embrionário. Falta o poder de contágio da fé, da esperança, do amor cego: falta a determinação para construir o futuro que queremos. Para mim, esta determinação começa pela renúncia à violência: à violência verbal e física, que multiplicamos cotidianamente. Em vez de deixarmos falar as nossas cicatrizes, com a reflexão que o tempo impõe, reagimos sem pensar a tudo o que acontece ao nosso redor. Acabamos por nos transformar em templos do ódio em vez de sermos vetores da mudança, da construção do futuro.
Nem tudo depende de nós, mas boa parte, sim. E o que depende de nós é coletivo, é plural, é coral, é recíproco, é interpessoal. Não criaremos um mundo melhor despejando ódio na tela das pessoas, insultando e desprezando as pessoas nas ruas, odiando o mundo ao nosso redor. Também não mudaremos nada fechados no nosso mundo, deixando para lá o que acontece, sendo indiferentes e cuidando só da própria vida. A nossa vida é um enredo coletivo, construído na relação com os outros.
Somos um país do futuro. E o futuro, para mim, começa hoje pelas pessoas mais desprezadas na nossa sociedade: empregadas domésticas, operários, sem-teto, favelados, pequenos agricultores, jovens negros, homossexuais, mulheres, indígenas, desabrigados, doentes, idosos, imigrantes, trabalhadores informais, professores. Todos esses sobreviventes à violência estruturada da nossa sociedade, frequentemente acusados de serem causa dos nossos problemas, estão aí justamente para mostrar o contrário. Eles sobrevivem e a sua sobrevivência deveria nos questionar: por que não recebem um salário justo, se trabalham? Por que são mortos, se não podem ser o que jamais serão, ou seja, brancos-masculinos-heterossexuais? Por que não têm acesso a moradia popular, se concordamos em pagar salários de fome? Por que nos queixamos de sua presença sob as marquises ou à beira da estrada, se achamos que grandes fazendeiros têm razão de se valer do usocapião para se apropriarem das terras que sempre foram dos povos indígenas? Por que achamos que bandido morto é bom, se somos contra a pena de morte e a nossa Constituição proíbe não só a pena capital, mas a condenação sumária sem processo?
Somos, sim, o país do futuro. O país do choque. Da perplexidade. Dos miseráveis que desafiam a nossa riqueza. Mas devemos ser o país das perguntas e das respostas. Porque, se continuarmos a ser o país da reação raivosa, do ódio, do desamor, seremos um país sem nada. Nem passado vai sobrar. E nós seremos apenas espectro de uma futura humanidade.
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