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O tempo é superior ao espaço

Vanildo Luiz Zugno

 

No capítulo quatro da Evangelii Gaudium, quando fala do bem comum e da paz social, o Papa Francisco oferece quatro princípios para orientar a ação dos cristãos. Entre eles, está o de que “o tempo é superior ao espaço”.

Numa primeira observação, pode ser algo estranho. Mas é algo fundamental e prático. É um convite a assumir a tensão entre a plenitude que sempre desejamos e as limitações que encontramos no cotidiano. Segundo este princípio, mais do que se preocupar com resultados imediatos, o fundamental é iniciar processos que ajudem as pessoas a fazerem caminho e a transformarem sua situação pessoal, comunitária e sócio-ecológica.

Ao propor este princípio, Papa Francisco não inventou nada. Ele simplesmente resgatou o modo de agir do Deus de Jesus Cristo. Um Deus que nunca intervém de forma impositiva no caminhar humano. Ele não age de fora para dentro, de cima para baixo. Ele desce, caminha ao lado, dialoga, propõe, mostra o caminho para que façamos nosso próprio caminho. Ele propõe e dispõe, mas nunca impõe. O caminhar do povo de Israel no Primeiro Testamento e o modo como Jesus se relaciona com seus discípulos e com as multidões é demonstrativo desse modo de agir de Deus que é modelar para os que nos propomos a segui-Lo.

A cultura moderna incorporou tal proceder no conceito de historicidade. Segundo os modernos, o futuro não vem sozinho e de forma mágica. Na economia capitalista, o processo é composto por trabalho, poupança, investimento, lucro, mais investimento, mais trabalho, mais lucro e assim indefinidamente. Mas Webber explicitou a relação entre a teologia cristã e o surgimento do capitalismo. Tem também o outro lado, o da proposta comunista em que o indivíduo sacrifica seus interesses individuais e até sua própria vida em nome de um futuro justo para toda a humanidade. Nas duas versões, o que interessa é o processo a caminho do futuro desejado que permanece sempre como uma utopia que nos provoca para o mais.

Ao fazer as pazes com a modernidade no Concílio Vaticano II, a Igreja Católica reincorporou no seu agir o conceito de processos pastorais. Na América Latina, as Conferências do CELAM são um exemplo clássico desse modo de organizar a evangelização. No Brasil, os planos da CNBB e de quase todas as dioceses refletem o resgate da tradição judaico-cristã em diálogo com um dos seus filhos, a modernidade.

Mas a modernidade passou... estamos em tempos de pós-modernidade que, paradoxalmente (é um outro assunto a discutir!), traz em si traços da pré-modernidade. Tanto nas suas expressões sociais como nas eclesiais. E um dos mais provocantes é a perda da noção de historicidade e processualidade e sua substituição pela imediaticidade: o futuro é agora! Na economia, consumir sem precisar trabalhar, poupar investir. Desde o clássico “quem quer dinheiro” do recém falecido Sílvio Santos até o “Lata Velha” e “The Wall” do Luciano Huck são expressões midiáticas desse modo de pensar-se no mundo. O dinheiro cai do céu, não é preciso nenhum esforço, só estar no lugar certo na hora certa e tudo está resolvido. O sucesso estrondoso das apostas eletrônicas conhecidas como “bets” se fundamenta nesse modo a-histórico em que o que conta é o sonho de que o “reino de deus” do dinheiro abundante se realize imediatamente.

No agir da Igreja Católica, passamos dos planejamentos pastorais para os eventos multitudinários e/ou midiáticos; da formação de leigos e leigas para o falar em línguas e aos “repousos no espírito”; das pastorais sociais – da terra, das águas, do povo da rua, das mulheres marginalizadas, da criança, do idoso... – para os Cercos de Jericó (não seriam “circos de jericos”?), exorcismos e “missas” de cura e libertação, novenas milagrosas e – última moda – as quaresmas de Miguel Arcanjo; da Pastoral da Juventude aos shows de bandas gospel e acampamentos catárticos; da teologia da libertação à teologia da prosperidade; dos ministérios como forma de serviço à comunidade ao coach religioso que pensa mais em seu próprio bem estar do que no cuidado daqueles que estão caídos à beira do caminho.

Essa lista – incompleta, é claro – de fenômenos preocupantes que constatamos na Igreja são, volto a insistir, manifestações de um modo de compreender-se no mundo da cultura pós-moderna que foi absorvido por setores da Igreja. Uma compreensão que tem por base a afirmação anticristã de que o espaço é mais importante que o tempo. A experiência vétero e novo testamentária, base de nossa fé, é de que o tempo, o caminhar, o processo, o passo-a-passo que cria autonomia pessoal e comunitária é mais importante do que o êxito imediato que pode preencher o hoje, mas não abre caminho para o Reino-que-vem para transformar plenamente toda a realidade e não apenas mascarar as dores do presente com um prazer imediato que logo se esvairá em fumaça.

O Papa Francisco insiste. Haverá, na Igreja, homens e mulheres dispostos a responder a seu apelo? Com certeza os há. E, se não os houver, as pedras se moverão para construir caminhos que conduzam, mesmo que lentamente, ao Reino-que-vem.

Sobre o autor

Vanildo Luiz Zugno

Frade Menor Capuchinho na Província do Rio Grande do Sul. Graduado em Filosofia (UCPEL - Pelotas), Mestre (Université Catholique de Lyon) e Doutor em Teologia (Faculdades EST - São Leopoldo). Professor na ESTEF - Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana (Porto Alegre)."

 

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