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O sínodo da Amazônia e o caráter laico do Estado

Vanildo Luiz Zugno

Causou espécie nas últimas semanas a informação divulgada por membros do alto escalão das Forças Armadas de que o Governo brasileiro estaria preocupado com o Sínodo sobre a Amazônia a ser realizado pela Igreja Católica mês de outubro de 2019. Mais espantosa foi a afirmação – primeiro confirmada e depois desmentida – de que bispos estariam sendo espionados e que haveria a intenção de setores do governo em interferir no Sínodo para que este não abordasse temáticas tidas como sensíveis tanto do ponto de vista econômico, político, ecológico e de segurança nacional.

Tal atitude por parte do Governo não era vista desde a redemocratização e fazia lembrar os tempos da recente ditadura militar em que, não só a Igreja, mas toda a sociedade, era mantida sob a vigilância e, se necessário, controle, pela persuasão ou pela força. Se há a vontade de controlar a Igreja Católica, quem poderá sentir-se livre? Imediatamente levantaram-se vozes, tanto na Igreja como na sociedade, contra esta suposta pretensão. Houve, como dissemos, também os desmentidos. Mas, como diz o ditado, “onde há fumaça, há fogo”.

Olhada no curto prazo, este episódio é, pela maioria dos analistas, situado dentro do quadro político resultante das eleições de 2018 onde venceu, em nível federal e na maioria dos Estados, um aglomerado de forças de corte neo-liberal no que tange ao econômico e marcadamente neo-fascista na sua proposta política e social. O Sínodo, por abordar temáticas sociais, culturais e ambientais, se coloca nos antípodas dessa corrente hoje hegemônica no Brasil e poderia soar como uma nota fora do tom no discurso monocórdico da propaganda governista e de sua mídia oficialista. E, como soe acontecer em governos de caráter fascista, toda voz discordante tem que ser calada e, se for o caso, eliminada.

Sem desmerecer este contexto próximo, a polêmica necessita ser situada no longo prazo e na tradição que remonta ao Brasil Colonial e ainda está muito presente na cabeça e nos corações de muitos brasileiros de que o Estado e a Igreja devem estar unidos para a manutenção da ordem social. Este modo de pensar, nascido com
Constantino e consolidado na Cristandade Medieval, foi institucionalizado no Padroado Colonial Português e em seu sucedâneo, o Padroado Imperial através do qual Dom Pedro I e Dom Pedro II outorgavam-se o direito de governar a Igreja Católica através do Ministério da Justiça. Até mesmo os revoltosos farrapos, aqui no Rio Grande do Sul, ao criar a fantasmagórica República de Piratini, nomearam ao Padre Chagas como Vigário Apostólico e chefe da Igreja Católica no Rio Grande do Sul. Em outras palavras, um “Papa” farroupilha para o Estado Farroupilha.

Verdade que a primeira Constituição Republicana de 1891 estabeleceu a liberdade religiosa e a separação entre Igreja e Estado. Mas uma união tão longa deixa marcas profundas nas duas partes que a compõem. E, depois de três curtas décadas de separação litigiosa, Igreja e Estado, através do Cardeal Leme e de Getúlio Vargas respectivamente, reataram, não legal, mas factualmente, a união entre os dois poderes naquilo que é conhecido como “neo-cristandade”.

Esse arranjo só foi colocado em crise pelo Golpe Civil-Militar de 1964 e a cruenta ditadura que se seguiu e que, em sua sanha persecutória a toda e qualquer fora de resistência, não titubeou em prender, torturar e matar a dezenas e dezenas de leigos, leigas, religiosos, religiosas e sacerdotes católicos. Contra estas ações, bispos formados dentro do espírito do Vaticano II, com coragem e valentia, se opuseram e constituíram um dos focos de denúncia contra o que vinha acontecendo no Brasil.

Se, nestes episódios das décadas de 1970/80, parte da Igreja Católica aprendeu que Igreja e Estado devem manter-se cada qual com sua identidade e missão própria e que, se em algumas circunstâncias podem operar cooperativamente, nenhuma das duas instituições pode querer utilizar a outra como instrumento para seus fins próprios. É, em outras palavras, o princípio do Estado Laico que faz bem tanto para o Estado como para a Igreja.

Mas, infelizmente, nem todos aprenderam com as lições da história e hoje vemos, no Brasil, renascer o desejo de um Estado teocrático ou de uma Igreja Imperial. E isso não só no mundo católico, mas com mais força e ressonância no campo das Igrejas pentecostais.

Isto posto, voltamos a afirmar que é importante, sim, denunciar a pretensa intenção do governo de imiscuir-se nos assuntos eclesiais. Mas é importante também, no quotidiano do agir eclesial e político, vencer a tentação da neo-cristandade e trabalhar para que o caráter laico do Estado – tanto no âmbito federal, como no estadual e municipal – seja respeitado e que as Igrejas tenham a liberdade para cumprir sua missão evangelizadora.

Sobre o autor

Vanildo Luiz Zugno

Frade Menor Capuchinho na Província do Rio Grande do Sul. Graduado em Filosofia (UCPEL - Pelotas), Mestre (Université Catholique de Lyon) e Doutor em Teologia (Faculdades EST - São Leopoldo). Professor na ESTEF - Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana (Porto Alegre)."

 

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