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O Oráculo de Delfos contra o voto feminino

Vanildo Luiz Zugno

Diferentemente do que alguns pensadores de viés positivista querem passar por verdade, os mitos não são uma forma primitiva de tentar explicar a realidade. Pelo contrário, os mitos são, talvez, a forma mais profunda de conhecer o ser humano. E não o ser humano passado dos tempos primitivos em que os mitos parecem situar-se. Mais do que explicar o passado, os mitos explicam o presente daqueles que os criam e recontam. Se quisermos conhecer uma sociedade, nada melhor que conhecer os mitos que lhe dão fundamento.

Além da mitologia do Oriente Próximo presente nas narrativas bíblicas, são muito conhecidas entre nós as mitologias gregas e romanas. Cada uma, a seu modo, ajudam-nos a entender a realidade das respectivas culturas em que foram fornadas. E, na medida em que as recontamos, elas se tornam significativas para explicar nossa própria cultura.

Pensando nisso, trago presente um mito grego pouco conhecido e que ajuda a explicar a exclusão das mulheres da vida política no berço da democracia ocidental. Exclusão que, como vemos no processo eleitoral atual, mesmo que legalmente superada, ainda é factualmente persistente.

Conta a mitologia grega que Atenas, o berço da democracia ocidental, nem sempre se chamou assim. Na origem, ela não tinha nome. Todos a chamavam de Cecrópia pelo fato de ela ter sido fundada pelo rei Cécropes. Filho de Hefesto e Gaia, o fundador tinha dupla natureza: era metade humano e metade réptil.

Cécropes era um rei cuidadoso e diligente e buscava com todo esforço e dedicação o bem estar de seus cidadãos. Além de edificar a cidade e construir muros para defendê-la, estimulou ele a navegação – a cidade era cercada por mares –, a agricultura e as artes.

Preocupado em ter a proteção divina, Cécropes foi o primeiro a cultuar a Zeus, o soberano de todos os deuses. Quis também ele que a cidade tivesse um deus protetor em especial. Mas, temendo, ao escolher um, desagradar os outros deuses, não sabia qual escolher.

Posseidon, o deus dos mares, desejoso de ter uma cidade pujante como aquela sob sua proteção, logo se apresentou como candidato. Para ganhar o favor dos habitantes da cidade, jogou seu tridente contra o rochedo sob o qual estava situada a cidade e da rocha brotou uma fonte de água. A cidade se alegrou, pois a água era escassa naquele local.

Sabendo da competição, Atenas, a deusa da sabedoria, também se apresentou. Sua relação com a cidade era próxima por um outro fator. Com efeito, Hefesto tentara estuprar Atenas. Esta fugiu e o sêmem de Hefesto caiu sobre Gaia e dela surgiu Cécropres. Desse modo, mesmo a contragosto, Atenas tinha algo a ver com a origem de Cécropes e da cidade. Para mostrar seu interesse em tornar-se protetora, Atenas fez surgir do rochedo da cidade um pé de oliveira. Diante do presente que lhe fornecei comida, óleo, madeira e sombra, a cidade exultou e tendeu a escolhê-la como sua protetora. Sem saber como resolver o impasse, Cécrope chamou todos os cidadãos de Atenas para a praça para consultá-los e assim não assumir sozinho tão grande responsabilidade.

Ora, naquele tempos primordiais da democracia, tanto homens como mulheres votavam. E todos, homens e mulheres, votaram. Os homens, unanimemente elegeram Posseidon como protetor da cidade. As mulheres, por sua vez, votaram em Atenas. E esta venceu, porque na cidade  havia uma mulher a mais que o total dos homens. E Atena foi instalada como protetora da cidade que recebeu, então, o nome de Atenas.

Poseidon, derrotado, não se conformou. Furioso, agitou as águas dos mares e a navegação tornou-se impossível. Não contente com isso, jogou suas ondas sobre as terras circundantes da cidade que se tornaram incultiváveis. Levados pelo terror, os habitantes de Atenas apelaram para o Oráculo de Delfos. Este, após muitas oferendas e rituais, proclamou sua sentença: Posseidon só cessaria sua fúria quando as mulheres que haviam eleito Atena como sua protetora fossem castigadas. E era um triplo castigo o que tinha que ser imposto a elas. Primeiramente, elas perderiam o mátrio poder, ou seja, os filhos que elas gerassem, daquele momento em diante, já não seriam delas, mas de seus maridos dos quais herdariam o nome. Em segundo lugar, elas deveriam ser destituídas do título de cidadãs de Atenas. E, em terceiro lugar, e consequência do anterior, elas não mais poderiam votar nas decisões a serem tomadas relativas à cidade.

Satisfeitas as exigências de Posseidon, sua violência cessou e Atena pôde reinar sobre a cidade. Quanto às mulheres, a partir daquele momento, não mais puderam participar das atividades democráticas da cidade.

Como disse anteriormente, por sorte esse mito é um dos menos conhecidos entre nós. Mas não faltam os Posseidon que, furiosos por verem-se preteridos na escolha das cidadãs, ameaçam-nas com sua violência a cidade e seus cidadãos e propõem a supressão dos direitos cidadãos das mulheres. E, pior hoje do que nos tempos míticos, às vezes com o voto das próprias mulheres.

Sobre o autor

Vanildo Luiz Zugno

Frade Menor Capuchinho na Província do Rio Grande do Sul. Graduado em Filosofia (UCPEL - Pelotas), Mestre (Université Catholique de Lyon) e Doutor em Teologia (Faculdades EST - São Leopoldo). Professor na ESTEF - Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana (Porto Alegre)."

 

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