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Mais que punição, condições para evitar o aborto

Miguel Debiasi

A legalização do aborto é um tema de debate muito penoso e divergente. Enquanto imperar legalismo, moralismo, fundamentalismo, ideologismo, heranças culturais, políticas, religiosas e de humilhação à mulher não se chegará a um termo ético, justo, humano sobre o aborto.

O aborto é uma questão que precisa ser debatida à luz da ontologia, do ser da existência humana vitimada, do direito à vida, da autonomia reprodutiva da mulher, de seus direitos sexuais e outros direitos. O debate sério dessa problemática social oferecerá as condições para evitar o aborto, o não permitido, o ilegal. Em nosso país isto é um enorme desafio público, civil e religioso.   

A Constituição Federal de 1988 não trata sobre o aborto e não faz referência ao direito à vida do feto. Em nosso país, o aborto tem regulamentação no Código Penal ou a Legislação Penal de 1940, que criminaliza essa prática, apenas em três situações: gravidez originária de estrupo, risco à vida da mulher e feto anencefálico.

O artigo 5º da Constituição Federal estabelece: “toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”. A lei protege o direto à vida, mas não fala especificamente sobre o direito à vida do feto.

A partir do artigo constitucional 5º é preciso fazer-se a pergunta: Quando inicia o direito à vida e quando inicia a vida? Essas dúvidas se confrontam com várias teorias sobre o direito à vida e sobre o início da vida. A quem cabe esse debate e esclarecimento? À ciência, ao judiciário, às igrejas, ou às pessoas vitimadas?  

Se o primeiro princípio constitucional é o direito à dignidade da pessoa humana, por conseguinte, faz-se necessário debater a autonomia reprodutiva da mulher, dos direitos sexuais, dos direitos reprodutivos e de sua influência sobre a regularização do aborto. Nesse debate não pode ficar à margem o direito fundamental do planejamento familiar e o direito à saúde pública. No direito ao aborto há muitos direitos envolvidos, isso resulta nas grandes dificuldades de as mulheres realizarem um aborto segundo a lei.

O nosso país de cultura religiosa cristã, judaica, muçulmana e outras, ao falar sobre o aborto e o direito à vida obtém importância o debate religioso. É essencial diferenciar as opiniões religiosas, as quais não podem ser adotadas de forma exclusiva pelo Estado laico.

Afinal, o que é aborto? O termo aborto de ab-ortus transmite a ideia de privação do nascimento, interrupção voluntária da gravidez, com a morte do embrião ou o produto da concepção. Alguns defendem que o termo correto seria “abortamento”, que é a ação cujo resultado é o aborto. Para a ciência da medicina o aborto é a interrupção da gravidez até 20ª ou 22ª semana, ou quando o feto pese até 500 gramas ou até 16,5cm.

Para a Igreja Católica, o aborto é a morte deliberada e direta, independente da forma como venha a ser realizado, de um ser humano na fase inicial de sua existência, que vai da concepção ao nascimento (Catecismo, n. 470).

Há vários tipos de aborto, que pode ser natural, acidental, criminoso e legal ou permitido. O natural não é crime e ocorre quando há uma interrupção espontânea da gravidez. O acidental, também não é crime, e pode ter várias causas, como traumatismo, quedas e outros. O aborto criminoso é aquele proibido por lei. O aborto legal ou permitido se subdivide em: a) terapêutico ou necessário: utilizando para salvar a vida da gestante ou impedir riscos iminentes à sua saúde em razão de gravidez anormal; b) eugenésico ou eugênico: é feito para interromper a gravidez em caso de vida extrauterina inviável.

Há também o aborto miserável ou econômico social praticado por motivos de dificuldades financeiras, prole numerosa, sendo esse excludente e extremamente punitivo por ocorrer com as mulheres que vivem nas periferias das cidades.

O Código Penal Brasileiro em seu artigo 124 pune o aborto provocado na forma do auto aborto ou com consentimento da gestante; o artigo 125 pune o aborto praticado por terceiro sem o consentimento da gestante; o artigo 126 pune o aborto praticado com o consentimento da gestante; o artigo 127, descreve as formas qualificadas no mencionado delito ou crime.

No Brasil, funcionam 40 hospitais públicos para serviços de aborto legal. Essas unidades hospitalares prestam atendimento a mulheres grávidas vítimas de estrupo ou risco de vida. Segundo levantamento do ministério da saúde, 48% da população desconhece esse serviço. Na falta de informação, ao preconceito, ao despreparo dos profissionais da saúde, à ineficácia do Estado em garantir o acesso à saúde pelas mulheres, constitui-se um desrespeito à vida digna. A desinformação ocasiona comportamento sexual de alto risco, como abortos clandestinos com consequências maléficas para o aparelho reprodutor da mulher, a falta de tratamento pós-aborto gera problemas psicológicos, suicídios e outros.

Segundo uma pesquisa realizada, os motivos que levam a mulher abortar são uma prole maior do que a planejada, dificuldade para obter métodos anticonceptivos modernos, falta de orientação no planejamento familiar, pouca ou nenhuma instrução, comportamento sexual de alto risco, dentre outros. Se julgarmos pela Constituição Federal, as mulheres que são impedidas de ter acesso ao atendimento à saúde, têm violadas a sua honra e a sua dignidade. Essa situação penaliza a mulher e gera graves consequências.

O aborto é um problema social. A solução para essa questão deve ser proposta mediante a incorporação de direitos humanos, da mulher, da saúde pública, da justiça social e outros. A punição não reduz os abortos praticados, faz-se necessário uma estrutura pública de atendimento, orientação, consciência social sobre os direitos das mulheres e dos humanos.

A aprovação do Projeto de Lei 1.904/2024 na Câmara dos Deputados propõe equiparar o aborto ao crime de homicídios e que sugere penas mais severas para quem realiza aborto legal, fere a nossa consciência e os direitos das mulheres. A aprovação do projeto é fruto do movimento cristão e evangélico ultraconservador, cheio de astúcia política ideológica. Diga-se de um movimento religioso absurdo, cruel, monstruoso, perverso contra a dignidade e o direito das mulheres e à vida humana.

No Congresso Nacional, Câmara dos Deputados e no Senado há uma herança cultural/religiosa/política/social influenciada pelo moralismo católico-cristã e outras religiões que é um fardo para as mulheres. É preciso superar essa mentalidade perversa, a herança de humilhação e de desvalorização da mulher e da consciência do Outro. Portanto, o aborto é uma DOR que nenhuma mulher deseja ou mereça viver.

Sobre o autor

Miguel Debiasi

Frade da Província dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul. Mestre em Filosofia (Universidade do Vale dos Sinos – São Leopoldo/RS). Mestre em Teologia (Pontifícia Universidade Católica do RS - PUC/RS). Doutor em Teologia (Faculdades EST – São Leopoldo/RS).

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