Brumadinho, poesia e profecia
Há cinco dias, os helicópteros cruzam os céus de Brumadinho. Voam sobre a lama da barragem que rompeu e arrastou vidas humanas, animais, vegetais, tudo enfim que era vivo e respirava. Derrubou construções erguidas em nome do progresso e da arte. Arrastou planos, projetos, futuro, memória. Soterrou sonhos, alegrias, confiança, esperança. A barragem que rompeu ainda não chegou ao seu destino. Busca caminho até o mar e enquanto isso polui o rio e destrói a vida e o futuro das comunidades que dele vivem.
Os helicópteros têm outro destino que não o mar. Voam para resgate de vivos e mortos. Chegam onde estão bombeiros e cães farejadores. E estes lhes entregam mais um corpo para transportar. Os helicópteros levantam aquele corpo do solo que o sepultou na lama assassina. E cada vez que alçam voo levando pendurada em sua fuselagem a macabra e sagrada carga que devem fazer chegar ao necrotério, ao caixão, ao sepultamento, escrevem também nos céus a indignação de todo um povo. Juntamente com o respeito pelas vidas que se foram e agora se dirigem à sua última morada, o Brasil experimenta dor e raiva. Treme e se revolta pela tragédia anunciada e nunca justificada.
A Samarco ainda não purgou seu desastre de três anos atrás e este acontece outra vez e em maior escala. Os presidentes, diretores, técnicos, supervisores dão as mesmas explicações. Ou talvez nem sequer as deem. Murmuram um discurso tão sem sentido quanto vazio. Simplesmente porque não há explicação possível. Não há justificativa para que a exploração das minas vá pouco a pouco dando mordidas e dentadas crescentemente vorazes nas montanhas. As montanhas que formam a paisagem das Minas e inspiraram poetas e escritores geniais agora são túmulo de centenas de vítimas que a lama soterrou e sufocou.
A consciência do que se passou é muito clara. Não se trata de desastre ambiental quando a natureza se desordena e se enfurece e despeja um tsunami, uma erupção vulcânica sobre cidades e paisagens. Ou quando a terra treme e se abre, tragando vidas inesperadamente. Não, não se trata de algo incontrolável e para além das possibilidades de previsão e cuidado humanos. Trata-se de um crime. Fruto da ganância, da cobiça, da irresponsabilidade. Tal como as minas de Potosí no Alto Peru, hoje Bolívia, foram comparadas à garganta de Moloch, que engolia as vidas dos mineiros que nela trabalhavam, as mineradoras do estado das Minas Gerais fazem barragens inseguras e frágeis, que se rompem e vomitam a morte sobre todo o ambiente e os seres vivos que encontram pelo caminho.
Diante do tamanho do desastre e da tragédia, as palavras faltam. Mas a poesia ajuda. E nela há não apenas lira e canto, mas também denúncia e profecia. O poeta maior Carlos Drummond de Andrade, itabirano de nascimento, contemplou muito as montanhas de Minas. Pressentiu o que ali aconteceria e profetizou com versos as tragédias que o Brasil vive nos últimos anos com Mariana e agora Brumadinho.
Poeta e profeta, Drummond recorda que se o Rio é doce, a Vale é amarga. Essa que se chamou Vale do Rio doce e hoje é conhecida apenas como Vale é identificada pelo poeta com estatais, multinacionais e muitos ais. Ais que se fizeram ouvir em Mariana, em 2015, e agora enchem o espaço de Brumadinho. Ais do peito das mães e esposas que choram as perdas irreparáveis que a lama levou. Ais das moças grávidas cujos maridos jazem insepultos e desaparecidos sob a lama de rejeitos.
A “Lira itabirana” de Drummond fala também de dívida, interna, externa e eterna. A dívida obriga a correr atrás do lucro, a antecipar prazos e tomar decisões errôneas que têm as consequências mortais que se conhece. E se graças à mineradora, toneladas de ferro exportamos, mais volumosas são as lágrimas que disfarçamos. Sem berro, acrescentará o poeta, conhecedor da resiliência infinita do mineiro, do brasileiro. Infinita e eterna é a dívida das mineradoras para com as vidas que a lama assassina e carregada de rejeitos interrompeu brutalmente.
Drummond pressentiu a destruição de sua cidade, de suas montanhas natais pela ação voraz e irresponsável das mineradoras. Por isso, sua Itabira lhe doía tanto. Por isso lá não voltava. Porque talvez não conseguisse disfarçar as lágrimas sem berro. Pois com o enlouquecimento da mineração, suas Minas o feriam ao perceber no coração da riqueza do minério a cobiça despertada e a escritura “de hipoteca e usura” maculando o amor pela terra natal.
Os helicópteros continuam seu triste trabalho. O risco alado de seu voo repete o refrão que constrange o coração do Brasil: o rio é doce, a Vale amarga.
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